A necessidade de maior diálogo entre prestadores, pacientes e operadoras é fundamental para que a qualidade da assistência (incluindo a segurança do paciente) seja – de fato – um diferencial competitivo
por Renato Vieira
Internar-se em um hospital é mais arriscado do que viajar mil vezes em voos comerciais, do que trabalhar em uma usina atômica por toda sua vida ou pular de paraquedas. Qualquer comparação com outras empresas prestadoras de serviços nos envergonha: basta imaginar 10% de nossas transações bancárias terem os valores adulterados, ou convivermos com igual probabilidade de um taxi errar o destino sugerido. A vida moderna seria inviável se nós, na saúde, fôssemos o benchmarking a ser seguido.
Evidentemente trabalhamos com maior número de variáveis, com maior imprevisibilidade que os demais serviços. Mas a desculpa só seria aceitável se pudéssemos responder – com absoluta objetividade – que todos os esforços para garantir a segurança do processo foram seguidos e implantados efetivamente; que todos os aprendizados de cada um dos eventos foram extraídos e generalizados; que houve comprometimento maciço das equipes e que a cultura vigente não tolera violações; que, no quesito segurança, os hospitais não competem, mas colaboram entre si. Sabemos muito bem que este não é o caso, e que ainda estamos distantes deste cenário… Apenas como exemplo, a higienização de mãos – com sucesso comprovado há 150 anos por Ignaz Semmelweis – continua sendo um desafio na maioria dos hospitais.
Sequencia de erros é o que leva a eventos adversos na medicina
Segurança na aviação é o modelo a ser buscado para a segurança do paciente
Segurança do paciente – um valor a ser buscado
Mas porque isso ocorre? Trata-se de uma falha moral do profissional de saúde, que mesmo conhecendo o correto não o implanta? Trata-se de uma falta de rigor dos gestores, que não implantaram ainda a cultura do desempenho? E, mais do que isso, por onde devemos começar a solucionar o problema?
Não sou marxista, nem pretendo aqui politizar a questão da segurança do paciente, mas creio que foi iluminada a concepção de Marx sobre a relação entre consciência e meios de produção: “o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina seu ser, mas, ao contrário é o ser social que determina sua consciência” (1). De forma mais didática: “o moinho movido a braço engendra a sociedade dos senhores feudais; o moinho a vapor, a sociedade dos capitalistas industriais”(2).
Barreiras à segurança do paciente
O fato é que não estamos conseguindo engendrar valores e comprometimento duradouros e sólidos com a questão da segurança assistencial. E isso, sem diminuir a importância do engajamento individual do profissional de saúde, tem raízes mais antigas e mais profundas, vinculadas à lógica de produção que – tento – descrever abaixo:
- Valorização da produção individual em detrimento do resultado coletivo. Um exemplo conhecido por todos os gestores hospitalares é o caso do cirurgião que, por seu elevado volume cirúrgico, possui alta representação na receita hospitalar, mas que não adere sistematicamente às boas práticas de segurança. O resultado coletivo piora: as taxas de infecção, reinternação, tempo de permanência costumam aumentar. Infelizmente, a pressão econômica oferece palco para uma tolerância excessiva com práticas inadequadas e abusivas na maioria dos hospitais;
- Assimetria de informação entre os atores da saúde (operadoras, prestadores e pacientes). A comparabilidade no setor é muito limitada. Não possuímos, de forma aberta e homogeneamente mensurável, indicadores que permitam a seleção de prestadores ou operadoras pelos pacientes. Mesmo com tentativas de agências reguladoras ou dos governos, as dificuldades metodológicas costumam dificultar substancialmente a validade destas comparações. Mesmo quando se conseguem indicadores confiáveis, os mesmos geram distorções importantes na forma como os profissionais de saúde se relacionam com seus pacientes, buscando melhores pontuações de comparação em detrimento das necessidades dos mesmos (3).
- Estímulos econômicos perversos. Infelizmente a perversão dos estímulos econômicos ainda é realidade em nosso setor. Embora seja largamente conhecido que os eventos adversos gerem custos desnecessários ao sistema e comprometam sua sustentabilidade, a ocorrência de eventos pode ser benéfica financeiramente em curto prazo para o prestador. Especialmente em cenários de ociosidade de estrutura instalada (o que é relativamente comum no panorama privado), basta que haja cobertura dos custos variáveis para que os tratamentos adicionais decorrentes de um evento adverso se tornem economicamente interessantes (4).
Não haverá saída fácil nem imediata, mas todas elas têm em comum a necessidade de maior diálogo entre prestadores, pacientes e operadoras. Para que a qualidade da assistência seja – de fato – um diferencial competitivo, ela precisa ser vista: indicadores devem ser publicados; selos de acreditação merecem ser progressivamente mais valorizados e a competição deve se deslocar do resultado financeiro individual para o resultado financeiro coletivo, que – neste caso – coincide com o desempenho assistencial. Só então poderemos dizer que possuímos – com orgulho – um sistema de saúde.
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