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Segurança do Paciente

Sobre como se deve morrer

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Por Renato José Vieira*

SAO PAULO, SP, Brasil, 8-4-2016, , 11:47:57 - IBSP - 1 Simpósio Internacional do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente. Marcelo Pereira/M11 Photos, )

Tive a felicidade de ver alguns de meus parentes mais caros morrerem com sabedoria. Meu pai, com uma cardiopatia terminal. Dois tios, um com linfoma, outro com câncer de pâncreas. Enquanto lhes fazia sentido lutar, fizeram tudo que lhes estava à mão. Uma vez conscientes dos custos – humanos – do tratamento, ponderaram até onde ir. Viveram seus últimos dias no seio da família e não experimentaram a morte em uma internação prolongada, desnecessária em boa parte das vezes. Souberam partir com a mesma dignidade como viveram.

Este não é um cenário comum em nossa cultura. Infelizmente, sequer somos capazes de dimensionar corretamente como se dão as mortes em nosso País, contando apenas com dados genéricos agrupados das declarações de óbito descontextualizados de informações clínicas e econômicas significativas. Não sabemos quanto custam estas mortes, quanto desperdiçamos de quimioterápicos, exames, ocupação de leitos de UTI, além de todo o drama de prolongarmos o sofrimento sem perspectivas realistas de recuperação. Ainda há muito o que fazer, uma vez que aparentemente nossos processos e cultura oferecem a um grande número de pessoas uma morte lenta, desnecessariamente cruel, e custosa ao sistema de saúde.

Um artigo recente publicado no JAMA (1) comparou dados de mortalidade de sete países desenvolvidos (Bélgica, Canada, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Noruega e Estados Unidos) em um estudo observacional retrospectivo de pacientes que morreram por câncer em 2010, caracterizando dados de internação hospitalar, local de óbito, custos e uso de quimioterápicos 180 e 30 dias antes do óbito.

Algumas informações muito interessantes podem ser depreendidas deste estudo:

• Considerando todas as idades, o percentual de mortes ocorridas em hospital para pacientes agudos variou entre 41,5% (Alemanha) e 51,6% (Bélgica) para a maioria dos países. A exceção foi a Holanda com “apenas” 29,4% das mortes ocorridas no hospital;
• O uso de quimioterápicos nos 30 dias que antecederam a morte oscilou entre 6% (Noruega) e 16% (Bélgica), na mesma população.

Não dispomos – infelizmente – de literatura nacional que permita a compreensão abrangente de como são os cuidados em pacientes terminais de câncer no Brasil. Olhando os dados de mortalidade de São Paulo/SP (2) de 2014, podemos observar que a proporção de mortes por câncer ocorridas dentro de hospitais foi de 93,8% (!), número este escandalosamente diferente do que observamos em países citados no artigo. Ainda que sem uma base numérica, arrisco afirmar que desperdiçamos da mesma forma recursos preciosos à sociedade através da prescrição irracional de quimioterápicos, uso de leitos, consultas de emergência, etc., sendo que estes recursos fazem falta a diversos pacientes que se beneficiariam do acesso ao tratamento oncológico.

Também os dados do TABNET mostram que a porcentagem de mortes por câncer ocorridas em hospital não variou com a escolaridade, o que sugere que somos democraticamente cruéis e ineficientes no uso de recursos públicos.

Tabela 1: Mortes por Câncer em 2014, por escolaridade e local de ocorrência.

tabelafinal

A comparação do desempenho na cidade de São Paulo com os dados internacionais sugere que a cultura médica e da sociedade, bem como a organização do sistema de saúde são fundamentais para melhorarmos a qualidade do cuidado e sua racionalidade. Interessante citar que a implementação de cuidados paliativos, ainda que apenas no cuidado intra-hospitalar, é associada a uma redução de custos na ordem de 9 a 25% (3) por paciente falecido, segundo revisão sistemática publicada em 2014.

Sêneca, estóico romano do Séc. I, escreveu a seu amigo:

Eu te peço, Lucílio, façamos de maneira que, como as pedras preciosas, nossa vida valha não pela sua duração, mas por seu peso. Meçamo-la por sua atividade real, não pela duração (…)

A morte está sempre presente sem omitir ninguém; o assassino segue sua vítima. Um momento apenas é o que as pessoas discutem com tanto empenho; e de que serve evitar por mais ou menos tempo o inevitável?” (4)

Prolongar a morte, utilizando a expressão mencionada pelo meu colega Lucas Zambon em outro editorial do IBSP, é mais do que crueldade: é uma irresponsabilidade.

* Renato Vieira é Gerente Médico Corporativo no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo e consultor do IBSP.

Referência bibliográfica

  1. Comparison of Site of Death, Health Care Utilization, and Hospital Expenditures for Patients Dying With Cancer in 7 Developed Countries. Bekelman JE et al. 2016;315(3):272-283
  1. Consulta ao sistema TABNET da Prefeitura Municipal de São Paulo, realizado em 17/7/2016 (http://tabnet.saude.prefeitura.sp.gov.br/cgi/tabcgi.exe?secretarias/saude/TABNET/SIM/obito.def)
  1. Economic Impact of Hospital Inpatient Palliative Care Consultation: Review of Current Evidence and Directions for Future Research. May P., Normand C & Morrison RS. JOURNAL OF PALLIATIVE MEDICINE. 2014; 17( 9): 1054-1063
  1. “Sêneca. Sobre os enganos do mundo” – São Paulo/SP: Editora WMF Martins Fontes, 2011

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