Fatores como o dinamismo da economia, a riqueza do país, a organização de seu sistema de saúde e o acesso ao mesmo podem ser determinantes para a qualidade da assistência à saúde
Por Renato Vieira*
Sistemas democráticos possuem melhor desempenho nos indicadores de saúde do que sistemas não democráticos. Embora possa haver considerável discussão sobre o que define a democracia, e o que a separa de uma ou de outra corrente política sectária, há considerável corpo de evidência mostrando que regimes políticos abertos são responsáveis por melhorias nos indicadores de saúde populacional.
Como exemplo, cito o estudo de Patterson & Veenstra (1), publicado em Julho de 2016, em que os autores analisam os dados econômicos, políticos e de saúde de 168 países entre 1960 e 2010, evidenciando que sistemas que possuíam eleições democráticas mostraram uma expectativa de vida 11 anos maior e mortalidade infantil 62,5% menor que países sem eleições livres. O estudo ainda mostra que o tempo de vida democrática de um país influencia em seu desempenho: o início da vida democrática de uma nação no modelo multivariado utilizado traz um ganho de cerca de 2 anos na expectativa de vida de seus membros; para países com mais de 25 anos de democracia, este ganho seria, em média, de 14 anos.
Outro estudo de 2005 (2), utilizando dados individualizados da World Health Survey, uma pesquisa epidemiológica realizada pela OMS com mais de 300 mil pessoas de 70 países diferentes, também mostrou de forma robusta a associação positiva entre democracia e auto-relato de saúde. Esta relação se manteve significativa mesmo quando variáveis de confusão individual (p.e., idade, sexo) e coletivas (p.e., PIB per capita e país) foram controladas pelo modelo de regressão.
Embora haja relativa robustez empírica ao argumento, suas explicações variam substancialmente. Fatores como o dinamismo da economia, a riqueza do país, a organização de seu sistema de saúde e o acesso ao mesmo parecem ser hipóteses mais prováveis. Também não podemos excluir o fato de que boa parte das democracias abertas estão também inseridas em sistemas de livre-mercado, sendo esta uma variável possivelmente influente. Preservando o encanto do mistério, sabemos que onde existe liberdade há mais saúde, mas não podemos descrever se é a liberdade social ou econômica o componente de maior peso.
E, como a história não é uma experiência com grupo controle aleatorizado, nem possuímos “hipóteses falseáveis” no sentido de Karl Popper, estas possibilidades estão longe de um consenso. É provável que os sistemas democráticos tenham maior capacidade e velocidade de adaptar sua operação às necessidades de seus usuários, alocando recursos com maior eficiência, uma vez que as próprias tensões entre seus indivíduos são debatidas livremente.
Em quase todas as coisas da vida podemos enxergar um conflito entre forças evolutivas e forças reacionárias, entre movimento renovador e manutenção do status quo. Esta tensão é tão constitucional e onipresente que o filósofo alemão Georg W.F. Hegel colocou a contradição como o próprio motor da história. Evoluímos pelo conflito – de forças, opiniões, correntes – e é do próprio embate que nascem sínteses novas. Não há porque evitá-lo, nem é possível nos esquivarmos dele. A contradição é a forma como a história acontece. A genialidade de Hegel foi enxergar o óbvio: a história tem seus mecanismos, e a dialética é um dos mais constantes da mesma.
Diálogo democrático
Mas a beleza da dialética encontra – a meu ver – sua expressão máxima no regime democrático. Da mesma forma com que a evolução das espécies é acelerada quando encontramos certas condições ideias para a especiação (tais como ciclo reprodutivo sexuado rápido, pressão seletiva direcional, taxa alta de mutações espontâneas, etc), é no conflito travado pelo diálogo democrático que a sociedade evolui mais rapidamente: entre o orador que desafia e o que defende um ponto de vista, a sociedade é colocada de frente com a necessidade de se posicionar… A síntese de ideias é o produto forçoso do diálogo. Só onde existe embate vivo e sincero é que existe transformação.
Prova disso é que encontramos muitas formas diferentes de democracia no globo (direta, indireta, colegiada, etc.), enquanto as ditaduras – sejam de esquerda ou de direita – são em sua maioria muito parecidas entre si. Os estadistas democráticos diferem grandemente um do outro, enquanto os tiranos são comicamente semelhantes.
Mas a hipótese mais fascinante, ainda que longe de uma demonstração empírica irrefutável, é que a mesma regra que vale para as grandes sociedades também possa ser aplicada ao cenário de uma única empresa. Do mesmo modo que a teoria da gravitação explica tanto a lua longe da minha mão, que não cai, como a pedra que eu toco, que cai, porque não arriscarmos que os mesmos princípios que tornam uma sociedade próspera na democracia não valham também para um único hospital?
Regras claras para a produção de decisões, participação inclusiva dos diferentes setores da sociedade e respeito absoluto ao direito de expressão e representação (3) são princípios mínimos encontrados nos governos democráticos. Poderíamos imaginar um hospital regido por tais diretrizes. Onde a hierarquia não fosse utilizada, jamais, como forma de inibição da expressão do outro; onde os fóruns de discussão fossem suficientemente inclusivos, fazendo com que cada membro desta comunidade possa sonhar que suas sugestões sejam tornadas prática; onde as decisões viessem sempre que possível recheadas de amplo debate.
Os princípios democráticos possuem a capacidade de nos fazer sonhar, e ao sonharmos podemos dar o melhor de nós mesmos em prol de uma visão. Foi o que descreveu Alexis de Tocqueville quando visitou a América em 1831:
“A democracia não proporciona ao povo o governo mais hábil, mas faz o que o governo mais hábil muitas vezes é incapaz de criar; ela difunde em todo corpo social uma atividade inquieta, uma força superabundante, uma energia, que nunca existem sem ela e que, por pouco que sejam suas circunstâncias, podem gerar maravilhas”(4).
As grandes transformações de um povo, ou de uma empresa, exigiram sacrifício e abnegação em seus principais momentos. Exigiram a capacidade de defender valores, ainda que com prejuízos pessoais imediatos. Exigiram a capacidade de priorizar o grupo em detrimento dos próprios interesses e de abdicar de nossas lembranças sem a chance de sequer dizer adeus.
Não é por ser um governo de decisões perfeitas que a democracia desperta estas capacidades, É, antes de tudo, pela capacidade de não excluir seus membros do processo decisório, por mais que, individualmente, a tarefa lhe seja inadequada. De alternar-se no poder, quando haveria meios de se retê-lo; ou de agir com transparência, quando seria fácil dissimular. Estas características – tão comuns no processo verdadeiramente democrático – são as mesmas necessárias para que os hospitais abracem, de fato, a luta pela segurança assistencial.
Bibliografia
1. Patterson AC & Veenstra E. Politics and Population Health: testing the impact of electoral democracy. Health & Place 40(2016): 66-75
2. Krueger PM, Dovel K & Denney JT. Democracy and self-rated health across 67 countries: A multilevel analysis. Soc Sci Med. 2015 Oct;143:137-44
3. Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 13ª. Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2015. ISBN: 978-85-7753-087-8
4. Tocqueville, Alexis de. A Democracia na América: Leis e Costumes – Livro I. 3ª. Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2014. ISBN 978-85-8063-155-5
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