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Incentivos econômicos e desempenho assistencial: uma saída para a qualidade?

Incentivos econômicos e desempenho assistencial: uma saída para a qualidade?
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“Sim, irmão, o dinheiro não é tudo. Mas o que é que é tudo?” (Millôr Fernandes)

 

Dr. Renato Vieira Foto: Marcelo Pereira
Dr. Renato Vieira  Foto: Marcelo Pereira

Por Renato Vieira*

Todo gestor, em algum ponto de sua busca por melhorias de qualidade, já pensou em implementar – e algumas vezes efetivamente o fez – um sistema de pagamentos baseado em metas de qualidade. A lógica é cristalinamente simples: o profissional, em sua busca por ganho financeiro, mostrará maior empenho ou esforço para atingir determinada meta ou padrão de qualidade.

O ser humano, contudo, não é tão simples nem tão previsível. O que nos parece verdade elementar da motivação humana merece ser tratada com rigor científico e busca de evidências empíricas de sua realidade. A Cochrane Collaboration ® tem feito isso nos últimos anos, e os resultados não são homogêneos nem tão encorajadores como podem parecer à primeira vista.

Flodgren et al. (1), em uma revisão sistemática que buscava compreender o impacto de estímulos financeiros no comportamento de profissionais de saúde, selecionaram para análise 4 revisões previamente publicadas que agregavam 32 estudos metodologicamente considerados de pobre a moderada qualidade de evidência. Estes estudos abordaram 5 modalidades de estímulos financeiros: pagamentos sazonais; pagamentos realizados por trabalhos específicos (p.e., efetivação de vacinação ou screenings); pagamento por paciente ou população (“pagamentos por capitação”); incentivos por atingimento de metas ou parâmetros de qualidade; e, por fim, qualquer sistema misto composto por mais de um destes métodos.

Embora os autores afirmem que algumas destas modalidades apresentaram resultados positivos nos estudos incluídos, os mesmos não conseguiram realizar um agregado estatístico aos modelos clássicos de metanálise. Em suas próprias palavras “a metanálise não foi possível (devido a dados faltantes e à heterogeneidade das medidas dos desfechos)”, sendo então optado pela descrição crítica dos achados dos sumários e à contagem de votos para posicionamento sobre a eficácia de tais intervenções.

Os achados da revisão são tão heterogêneos quanto os estudos neles constantes. Evidências foram apontadas de que pagamentos por serviço podem aumentar a taxa de cobertura de consultas ou de visitas de saúde, ainda que nenhum dos trabalhos avaliados tivesse alto nível de qualidade e controle de vieses. Sistemas de capitação (pagamentos fixos por paciente ou população) também foram associados a resultados em desfechos relacionados à práticas de prescrição, taxas de admissão hospitalar e custos com medicações. Estes achados se basearam em 13 estudos heterogêneos não-randomizados. Quanto aos estímulos baseados no atingimento de padrões pré-definidos de qualidade, 8 ensaios randomizados e 2 estudos não randomizados foram avaliados. Os achados, em geral, se mostraram positivos na maioria dos desfechos avaliados, favorecendo a intervenção. Nenhum dos estudos, entretanto, avaliou desfechos clínicos significantes ao paciente, não sendo possível, portanto, extrapolar os achados descritos.

Outras revisões e estudos aumentam as incertezas das conclusões. Gavagan e colaboradores (2), analisaram dados administrativos comparando o desempenho de médicos de 6 centros comunitários de saúde de Houston que receberam incentivos vinculados a performance em rastreamento de câncer cervical, realização de mamografia e imunização infantil. Os resultados deste grupo foram comparados a outros 5 centros com perfil semelhante da região. Os dados de 6 anos comparando ambos os grupos não mostraram diferenças significantes, nem clinicamente, nem estatisticamente.

Ainda dentro da Cochrane Collaboration, Scott A. e colaboradores (3) realizaram outra revisão buscando compreender que tipos e níveis de incentivos poderiam ter impacto no cuidado médico em nível primário. Para tanto, analisaram 7 estudos que abrangiam desfechos relacionados à rastreamento de câncer de colo uterino, mamografia, imunização infantil, controle da diabete / hemoglobina glicosilada e adequação de medicação para asma. Também mostravam heterogêneas estratégias de pagamento, o que inviabilizou comparações robustas. Os achados de 6 destes estudos foram modestos, e um dos estudos não mostrou nenhum benefício da intervenção. Os autores avaliaram os estudos como metodologicamente pobres, ressaltando que não observaram controle rigoroso dos vieses, e que havia a possibilidade dos médicos selecionarem pacientes, manipulando o recebimento de benefícios. Por fim, concluíram que “há evidência insuficiente para suportar ou não suportar o uso de incentivos financeiros” para melhoria de desfechos em saúde.

A ideia de que basta o estímulo financeiro para que o ser humano adapte seu comportamento tem raízes antigas. De uma forma mais explícita na teoria econômica, ela aparece nos escritos do inglês Jeremy Bentham, no final do século XVIII. Para Bentham, “a natureza colocou a humanidade sobre domínio de dois mestres soberanos, a dor e o prazer. (…) Eles nos governam em tudo que fazemos, em tudo que dizemos, em tudo que pensamos. O princípio da utilidade reconhece essa sujeição e a aceita como fundamento de sua teoria social” (4). O princípio motor econômico do homem seria sempre maximizar a utilidade que consegue extrair de suas relações, entendo utilidade como “a propriedade de qualquer objeto que tenda a produzir algum benefício, vantagem, prazer, bem e felicidade”. O valor das coisas advém, justamente, da utilidade das mesmas e isso pode ser quantificado.

O grande problema de tentarmos entender o homem a partir de um princípio de simples “maximização da utilidade” é o fato de isolarmos o mesmo de sua história. É como se a decisão recaísse numa simples conta matemática: “Quanto ganho? Quanto perco?”. Seres humanos não funcionam assim, e a heterogeneidade dos resultados dos estudos de incentivos financeiros como ferramentas de melhoria são prova disso.

Seres humanos são criaturas históricas: traçam acordos com suas instituições; delas participam e comungam seus valores, criadores e criaturas da própria cultura. Limitar a motivação do comportamento a uma questão de “estímulos” é inverter o pacto social: não é o estímulo quem dirige o conjunto de valores. Ele, infelizmente, não possui este poder. O estímulo, econômico ou não, deve ser entendido justamente como consequência dos valores de uma determinada sociedade. Ele é a ferramenta de uma cultura, jamais sua causa.

Bastante elucidativo é o exemplo clássico das creches da cidade de Haifa. Este estudo, publicado por Uri Gneezy e Aldo Rustichini em 2000 (5), descreve o fracasso da adoção de um sistema de punição econômica que visava evitar que os pais atrasassem na retirada de seus filhos no fechamento de 10 creches desta cidade, às 16h00. Após a implantação de penalidade econômica, o resultado simplesmente piorou. A falha da ação estava justamente em pressupor que a decisão principal era de natureza econômica, sem que houvesse base robusta no pacto social entre pais e escola. Uma vez pagando penalidades econômicas, muitos pais se viram no direito de atrasarem mais do que faziam antes.

É ilusório acreditar que simplesmente dirigindo estímulos econômicos aos profissionais de saúde lograremos uma revolução na qualidade da assistência. A lição é realmente importante: antes dos estímulos econômicos, a cultura deve ser trabalhada. A cultura é quem verdadeiramente constrói a mensagem. O modo como se remunera um trabalho é apenas seu arauto. A sinalização é mais uma forma de comunicar o que realmente é importante para a alta gestão. Se esta comunicação não for coerente com todos os demais referenciais culturais da empresa, ou seja, com todas as demais práticas adotadas por ela, apenas se produzirá balburdia e confusão sem benefício real.

Lembro uma antiga anedota que conta a história de um suíço poliglota que para seu carro perdido e pergunta para dois amigos parados em uma esquina: “Do you speak english?”. Frente à negativa de ambos, o suíço retruca: “Hablan ustedes español?”. Nova negativa, seguida de outra tentativa: “Parlez Vouz Français?”… Após mais algumas tentativas frustradas o suíço desiste e segue adiante, irritado, cantando os pneus do carro. Os dois amigos se olham, e um deles pergunta: “Meu amigo, não é a hora de aprendermos uma segunda língua?”. Ao que o outro retruca: “Acho que não… O gringo aí sabia seis línguas e não serviu para nada…”.

Todo processo de mudança de cultura é a criação de uma nova forma de cultivar e comunicar valores. Estímulos econômicos baseados em performance funcionam da mesma maneira que a anedota: não adianta achar que eles servirão para algo se a mensagem não fizer sentido àqueles que a ouvem.

 

* Renato Vieira é Gerente Médico Corporativo no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo e consultor do IBSP.

 

Veja mais

 

Referências Bibliográficas:

  1. Flodgren G, Eccles MP, Shepperd S, Scott A, Parmelli E, Beyer FR. “An overview of reviews evaluating the effectiveness of financial incentives in changing healthcare professional behaviours and patient outcomes (Review)”. The Cochrane Library, 2011, Issue 7.
  1. Gavagan FT et al. “Effect of Financial Incentives on Improvement in Medical Quality Indicators for Primary Care”. JABFM, 2010, 23 No. 5.
  1. Scott A, Sivey P, Ait Ouakrim D, Willenberg L, Naccarella L, Furler J & Young D. “The effect of financial incentives on the quality of health care provided by primary care physicians (Review)”. The Cochrane Library, 2011, Issue 9.
  1. Hunt EK. “História do Pensamento Econômico – Uma Perspectiva Crítica”. 2ª. Edição – Rio de Janeiro – Elsevier, 2005. Citação pág. 124.
  1. Gneezy U & Rustichini A. “A fine is a price”. Journal of Legal Studies, 2000, Vol. 29.

 

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