Padronização x Autonomia
Muito se discute sobre a pouca evolução no campo da segurança do paciente. As barreiras para a evolução incluem uma grande diversidade de fatores, entre eles os modelos de pagamento e financiamento, a formação básica dos profissionais nas faculdades, os problemas de sobrecarga de trabalho, e ainda a falta de padronização nas condutas. Quanto a este último item, é inegável que o grande ponto de desequilíbrio é o médico.
A profissão médica sempre foi pautada por uma grande autonomia, e isso sempre foi encarado como uma das grandes vantagens da profissão. Porém, com os grandes avanços tecnológicos, o aumento da complexidade dos pacientes e a inevitável falta de sustentação econômica da área da saúde no contexto atual, não há como não colocar esta autonomia em discussão.
Em todas as outras áreas de atividade humana, seja na indústria ou mesmo em serviços, a padronização sempre foi um dos melhores métodos para melhorar a qualidade do que é feito, e ainda permitir a redução de custos. Mas a realidade na área da saúde é que existem muitas variações no uso de intervenções diagnósticas e terapêuticas. A tradução disso se dá na baixa adesão a melhores práticas que ocorrem em torno de 50% dos casos, segundo alguns estudos feitos fora do Brasil e publicados na revista New England Journal of Medicine nos anos 2000. Não há como não dizer que em nosso país somos, na melhor das hipóteses, iguais aos norte-americanos.
É incrível verificar esta falta de adequação de condutas exatamente nos profissionais médicos. Por que digo isso? Porque é na medicina que existem mais diretrizes, guidelines e consensos. Sempre com atualização periódica e com julgamento baseado em evidências (tanto para o nível da evidência quanto para o grau de recomendação). E ainda, em pesquisas norte-americanas, a maior parte dos médicos acredita que os hospitais devam redesenhar seus sistemas e processos para evitar erros médicos.
Mas muitas barreiras surgem afastando o médico desse contexto. Além da histórica autonomia da profissão, que já apontamos, vemos que o nível de atualização dos médicos frente a melhores práticas é heterogêneo. E é irreal acharmos que todo médico consegue armazenar todo o volume novo de informações que é divulgado diariamente. Outro ponto é que alguns profissionais (ou mesmo especialidades inteiras) têm suas próprias “lendas urbanas”, acreditando em experiências individuais isoladas ao invés dos dados de grandes estudos. Ou mesmo a formação em termos de análise de evidências, o que leva tanto ao excesso quanto à falta de uso de novas tecnologias (medicamentos, exames, etc).
Redesenhar processos na saúde envolve exatamente a necessidade de protocolos, de checklists para evitar erros simples, de estruturação da comunicação escrita e verbal. Isso tudo é, de alguma forma, criar padronização. E o médico tem que ser trazido para perto dessa discussão tão necessária. Poderíamos simplesmente sugerir que os médicos seguissem o que houver de melhor nas evidências científicas, mas uma simples recomendação não muda comportamentos. O profissional médico precisa ser envolvido, mas também escutado. Precisa participar da formatação desses padrões, e, porque não, premiado ou reconhecido de alguma forma por se tornar um exemplo. E precisa ser convencido das vantagens dos protocolos e checklists para a segurança do paciente, e sua própria como profissional.
Vamos colocar da seguinte forma: um protocolo ou um checklist (formas de padronização) permitem que os itens básicos ou mais frequentes (e que muitas vezes podem ser críticos) sejam realizados ou ao menos lembrados. Isso permite que o “gasto cognitivo” do profissional seja dirigido exatamente em analisar o não usual, ou aquilo que é muito complexo para ser sintetizado em um padrão. Ainda há outras vantagens. No contexto de trabalho de equipe os padrões geram segurança de que todos estão fazendo sua parte, e que o paciente não será prejudicado. Para as instituições significa garantir eficiência com menores custos e melhores resultados.
Por fim, vamos colocar a polêmica da autonomia sob outra perspectiva. Imaginem que o processo assistencial de um paciente, desde o diagnóstico até o final do tratamento seja o caminho a percorrer entre duas cidades, milhares de quilômetros distantes entre si. Há muitos caminhos e formas de viajar entre estas duas cidades. Você pode escalar montanhas, atravessar pântanos, passar por um deserto… Você pode ir a pé, a cavalo, em uma carroça… Nessas opções você enfrentará riscos: animais selvagens, caminhos tortuosos, intempéries meteorológicas. E sem dúvida sua viagem levará dias. Sem dúvida, independente da opção tomada, você chegará à outra cidade, que é seu objetivo. Mas ainda há uma outra opção, que é a de você pegar um vôo sem escalas, que faz um caminho em linha reta entre as duas cidades, e que dura poucas horas. Se estivermos discutindo autonomia, cada um pode ter a liberdade de escolher como viajar entre as duas cidades, desde que atinja o objetivo de chegar até lá. Se ao invés de discutirmos autonomia, discutirmos “o que é melhor fazer?”, não tenha dúvida de que o vôo vai ser lotado de passageiros.
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