Marcela Buscato
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A maior parte dos pacientes que passam por uma unidade de terapia intensiva (UTI) percorrem um caminho quase obrigatório: de lá para uma unidade de cuidado intermediário ou para um quarto. Mas experiências sugerem que, talvez, exista um atalho até a recuperação. Alguns hospitais já testam a alta da UTI direto para casa, ainda que ela cause estranheza (mais nos médicos do que nos pacientes). Os dados são escassos, mas um novo estudo, divulgado esta semana na publicação científica Jama Internal Medicine, traz mais uma oportunidade de investigar os desdobramentos da mudança de rota (1). A princípio, eles parecem promissores.
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“Para os pacientes certos, a alta da UTI direto para casa significa melhorar a qualidade do cuidado e evitar dias desnecessários no hospital”, afirmou o médico canadense Thomas Stelfox, em entrevista ao IBSP – Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente. Stelfox é diretor de Pesquisa & Inovação do departamento de Medicina Intensiva da Universidade de Calgary, no Canadá, e um dos autores do novo estudo. Ele explica que a redução no número de transições no cuidado, um momento sempre delicado e suscetível a erros, diminui as chances de eventos adversos, além de a dispensa direta também ajudar a encurtar as internações e, consequentemente, a reduzir a exposição a riscos decorrentes do cuidado.
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A equipe liderada por Stelfox analisou o prontuário de 6.732 pacientes admitidos em nove UTIs de duas cidades canadenses entre 2014 e 2016. Desses pacientes, 86% saíram da UTI para outras alas dos hospitais e 14% foram dispensados para casa. Estatisticamente, não houve diferença nas condições de saúde dos dois grupos pós-alta. Entre os pacientes que continuaram no hospital depois de deixar a UTI, 25% voltaram à procurar a emergência passados até 30 dias da alta. Esse número foi de 26% entre os pacientes que foram direto para casa. A mortalidade após um ano também foi estatisticamente equivalente nos dois grupos: 4%.
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As grandes diferenças se concentram no perfil dos dois grupos – e são bastante previsíveis. Os que puderam pegar o atalho eram mais jovens (média de 47 anos), tinham, no máximo, uma comorbidade, apresentavam quadros reversíveis e localizados (como convulsão ou overdose), tinham usado por menos tempo medicação vasoativa e ventilação mecânica. Já os pacientes, cujo destino foi uma unidade semi-intensiva ou enfermaria, eram mais velhos (média de 57 anos), apresentavam quadros que envolviam vários sistemas ou tinham passado por cirurgias, além de terem usado por mais dias medicações vasoativas e ventiladores. Veja o perfil detalhado na imagem abaixo.
Além de reduzir as chances de eventos adversos ao encurtar a internação, a alta direta da UTI pode ser uma ferramenta importante para diminuir o tempo de espera por leitos em unidades de internação e agilizar o fluxo de entrada de novos pacientes nas UTI. O problema, frequente no Brasil, também acontece em outros países, mas aqui é mais preocupante na rede pública. Um levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM), divulgado em junho, mostra que, no Brasil, há 45 mil leitos em unidades intensivas: 51% alocado na rede privada, que atende a 23% da população. Os outros 49%, destinados à maior parte da população, ficam no Sistema Único de Saúde (SUS) (2).
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Um levantamento realizado entre agosto de 2006 e janeiro de 2007 por pesquisadoras da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP) dá pistas sobre o caminho mais comum para os pacientes que saem das UTIs brasileiras: dos mais de 400 que tiveram alta de UTIs gerais de quatro hospitais do município de São Paulo, 64,6% foram transferidos para unidades de cuidado intermediário e 32,9% para unidades de internação. O tempo médio de internação na UTI foi de nove dias (3). No Brasil, os critérios para admissão e alta na UTI são regulados pela resolução 2.156, de 2016, do CFM. Ela permite a alta nos casos em que o paciente tenha seu quadro clínico controlado ou estabilizado ou, para pacientes em final de final, quando a unidades de cuidados paliativos podem oferecer maior conforto (4).
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“A alta direto da UTI é certamente subutilizada”, afirmou em entrevista ao IBSP o anestesista Kyan Safavi, membro do Comitê de Melhoria de Qualidade e Segurança do departamento de anestesia do Massachusetts General Hospital, nos Estados Unidos. “As equipes intensivistas são treinadas e focadas em cuidados críticos, não em transições para casa.” Safavi, que não participou do estudo canadense, analisou a pesquisa e escreveu o editorial que acompanha a publicação (5). “A dispensa direto para casa não deve servir como uma maneira de liberar leitos de UTI”, diz Safavi. “Devemos usá-la com foco no paciente: para aqueles cujas características os tornam bons candidatos para uma transição adequada para casa.”
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Um dos primeiros estudos a investigar a prática, conduzido a partir de uma análise retroativa de prontuários entre 2003 e 2015, também no Canadá, não encontrou indícios de que a conduta tenha sido usada para dispensar pacientes quando as demais unidades de internação do hospital estavam cheias (6). Nesse período, principalmente a partir de 2009, as taxas de alta direto para casa da UTI estudada ficaram entre 11% e 12% por ano. Havia uma relação inversa entre a dispensa direta e a ocupação da UTI (quanto maior a primeira, menor a segunda), mas não houve qualquer associação com a lotação das enfermarias – ainda que os pacientes tenham esperado, em média, 2 dias por uma vaga fora da UTI. O perfil dos pacientes dispensados direto para casa era similar ao do estudo recém-publicado: mais jovens, com poucas comorbidades desde a admissão e quadros localizados e reversíveis.
Um dado sintomático a respeito da resistência em incorporar a conduta é que um estudo posterior de acompanhamento, publicado no ano passado, mostrou que os índices de alta direta nessa mesma UTI caíram após a publicação da primeira pesquisa – possivelmente pelo receio dos médicos. No levantamento mais recente, apenas 5% da equipe se disse muito confortável com a prática. Outros 20% relataram se sentir de desconfortável a muito desconfortável. Já os pacientes (98%) e as famílias (92%) se mostravam dispostos a colaborar com os procedimentos para antecipar a ida para casa (7).
Uma maneira de dar mais confiança à equipe de profissionais é garantir que a prática não perderá seu intuito inicial – beneficiar pacientes e não de apenas resolver problemas de fluxo e ocupação, de modo a comprometer os desfechos durante a recuperação. Para isso, é fundamental estabelecer critérios bem definidos para avaliar pacientes candidatos à alta direto para casa. É preciso desenvolver procedimentos-padrão de alta, estratégias de comunicação e de informação para os pacientes, além de um programa para avaliar se as condutas funcionam como esperado.
A alta direto para casa envolve incorporar transformações profundas na dinâmica da UTI. Não é à toa que a transferência para unidades intermediárias ou enfermarias é quase regra: há o propósito de permitir a continuidade do monitoramento, da melhora clínica e reabilitação. Para que a alta aconteça direto, esses processos terão de ser feitos dentro da UTI. “Precisamos começar a pensar na alta assim que a trajetória clínica do paciente se torna clara”, afirma o americano Safavi, do Massachusetts General Hospital. “Isso nos permitirá desenvolver planos de cuidados continuados de maneira pró-ativa.”
Um estudo pioneiro, publicado em 1999, mostra a extensão da mudança ao avaliar a dispensa direta em uma UTI cardiológica na província de Alberta, no Canadá (8). Foram absorvidos e adaptados ao cotidiano da UTI etapas de avaliação e orientação dos pacientes que antes seriam realizadas em outras unidades. No levantamento, dos 414 pacientes que receberam alta direta após infarto agudo do miocárdio, 2,7% morreram no período de seis semanas – porcentagem considerada pelos autores como condizente com dados da literatura. Eles não escondem os motivos que desencadearam a conduta: o corte do governo nos gastos com saúde. A estratégia economizou cerca de 4.000 doláres canadenses por paciente.
SAIBA MAIS
(1) Stelfox HT, Soo A, Niven DJ, et al. Assessment of the Safety of Discharging Select Patients Directly Home From the Intensive Care Unit A Multicenter Population-Based Cohort Study. JAMA Intern Med. Published online August 20, 2018.
(2) Brasil. Conselho Federal de Medicina. Serviço só existe em 10% das cidades. Jornal Medicina. Ed 280. Jun/2018
(3) Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução Nº 2.156/2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva (2016)
(4) Silva, Maria Claudia Moreira da, Sousa, Regina Marcia Cardoso de, & Padilha, Katia Grillo. (2010). Destino do paciente após alta da unidade de terapia intensiva: unidade de internação ou intermediária?. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 18(2), 224-232.
(5) Safavi K, Wiener-Kronish J, Hanidziar D. The Complexity and Challenges of Intensive Care Unit Admissions and Discharges Similarities With All Hospitalized Patients. JAMA Intern Med. Published online August 20, 2018.
(6) Lau VI, Priestap FA, Lam JNH, Ball IM. Factors associated with the increasing rates of discharges directly home from intensive care units—a Direct From ICU Sent Home Study. J Intensive Care Med. 2018;33(2):121-127.
(7) Lam JNH, Lau VI, Priestap FA, Basmaji J, Ball IM. Patient, family, and physician satisfaction with planning for direct discharge to home from intensive care units: Direct From ICU Sent Home Study. J Intensive Care Med. 2017;885066617731263.
(8) Senaratne MP, Irwin ME, Shaben S, et al. Feasibility of direct discharge from the coronary/intermediate care unit after acute myocardial infarction. J Am Coll Cardiol. 1999;33(4):1040-1046.
Alta: da UTI direto para casa – um atalho para fora do hospital
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