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Cuidados paliativos – chega de prolongar a morte

Cuidados paliativos – chega de prolongar a morte
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ESPECIAL IBSP – CUIDADOS PALIATIVOS

 

Lucas Santos Zambon

 

Todo mundo vai morrer e a maioria das pessoas tem medo deste momento. Mas, de verdade, essa não é a parte que incomoda (ou que deveria incomodar). A questão delicada e aflitiva não está relacionada ao fim da vida, mas em como ela deve acabar, pois em muitos casos a experiência não é agradável e envolve cuidados que acabam por prolongar o processo de morte. E boa parte desse sofrimento é culpa de quem presta assistência médica.

Uma entrevista da jornalista norte-americana Katy Butler sobre sua experiência com a morte de seus pais conta  que o pai, mesmo com demência avançada e tendo sofrido um acidente vascular cerebral, ganhou um marcapasso por indicação médica, algo que segundo ela manteve o coração funcionando, mas não mudou a progressão da demência. A esposa, alguns anos depois, pediu ajuda à filha para desligar o marcapasso, por conta da situação sofrida do marido (e dela). Parece que a tecnologia médica, no caso, o marcapasso, trouxe mais tempo de vida ao paciente, mas não foi capaz de evitar sofrimento, nem do paciente, nem de sua família.

Teoria baseada nos humores

Até o século 17, as explicações sobre saúde e doença se baseavam na Teoria Humoral, baseada na proporção entre os quatro humores do seu corpo (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra), que ditavam seu tipo fisiológico, e os tratamentos de suas doenças seriam influenciados por isso.

Os tratamentos consistiriam em infusões, chás, emplastros, e uma boa pitada de fé. Tirando o que era “extirpado” pelos barbeiros-cirurgiões (no cardápio de tratamentos havia arrancar dentes podres e abscessos em geral, amputações durante batalhas, sangrias a gosto), a medicina não era exatamente a arte de curar. Provavelmente, era a arte de dar algum conforto aos doentes,.

A cura para valer

Só no século 20, mais precisamente em 1928, quando Alexander Fleming descobriu que um fungo conseguia impedir o crescimento de uma bactéria, deu-se um salto. Nascia a penicilina e o tratamento de infecções. A medicina começou a curar as pessoas pra valer.

O século 20 seguiu seu curso e tudo foi atropelado pelas guerras mundiais. O mundo entrou em caos, dor, sofrimento, perda. E morte. Muitas mortes.

Poder da medicina

No pós-guerra, parece que se tentou compensar isso. A medicina chegou à lua. Diálise, ventilação mecânica, transplantes, marcapassos, desfibriladores, mais antibióticos, quimioterapia e outros medicamentos. Tudo à disposição. A morte se amedronta, pois agora há quem a desafie, e armado.

A população, cansada da morte das décadas precedentes e sem saber os riscos reais dos tratamentos, acha que tem deuses à disposição. O filósofo Ivan Illich debate muito esta questão na época, apontando a epidemia de iatrogenias que se instala, motivada pelo medo da morte, e dentro de um contexto no qual a medicina se torna algo “consumível” (algo indubitavelmente alimentado pelos médicos de então).

As idéias de Illich não poderiam ser mais modernas. Uma entrevista do Dr. Dario Birolini, à Carta Capital de dezembro de 2014, debate exatamente esse choque entre pacientes “impacientes” em busca de resultados e médicos que prolongam vidas à custa da perda de qualidade desta. A recorrência do tema meio século depois mostra como em alguns aspectos a medicina não conseguiu evoluir.

Salvar vidas x prolongar mortes

Não vou tirar os méritos do que foi feito no século 20, até porque é o que precedeu o que há hoje de tecnologia disponível. A estrada da evolução tem caminhos tortos, muitas vezes. Mas no que a medicina se tornou? Criamos gosto por curar. Eliminar doenças. Evitar a morte. Há opções de tratamento incontáveis e uma busca desenfreada para salvar vidas.

Mas a questão central é: estamos mesmo salvando vidas ou apenas prolongando mortes? E quando for a sua vez, o que você prefere? Vamos deixar de lado a situação de você jovem, ativo, com uma doença totalmente reversível às custas da tecnologia disponível. Nesse caso você (e eu também), queremos que tudo seja feito. Estou falando de outro contexto.

Aí vem a história de inserir cuidados paliativos na assistência. Não é moda, não. É necessidade básica. Diria até que saber paliar deveria vir antes de saber curar quando formamos profissionais de saúde.

O problema é que a palavra “paliativo” parece algo “mais ou menos”, algo “meia-boca”, que é a que nos remete o termo. É quase uma gambiarra. E fazer gambiarra com a vida de alguém parece muito ruim, não é? Promover cuidados paliativos em medicina está longe de ser uma gambiarra. A diferença é o objetivo. Não é curar. Extrapolando um pouco a própria definição da OMS de cuidados paliativos* (leia abaixo), paliar é controlar, estabilizar, confortar. E posso contar um segredo? A verdade é que a gente palia muito mais do que cura na medicina. Sabe hipertensão e diabetes, As doenças mais comuns do mundo? A gente só controla na imensa maioria dos casos. Lentifica a progressão. Dúzias de doenças são assim. Apenas controlamos, não curamos. Sério. Já havia pensado nisso? Em última análise, paliamos. E não há nenhuma vergonha nisso. Por isso, a medicina preventiva é a ideal, porque depois que você tem um diagnóstico, desculpe, mas você provavelmente conviverá com este diagnóstico para o resto de sua vida.

Por isso, precisamos perder o preconceito com a questão dos cuidados paliativos. Paliar é um critério de qualidade. E estou pensando nesse contexto mais amplo, que vai de promover uma boa morte a manter doenças controladas, mesmo sem cura.

E promover uma boa morte é fundamental. Se soubermos que isso vai ser feito conosco, a gente perde o medo. Consegue terminar de viver bem, aproveitando os momentos. Já fomos xamãs e já fomos deuses na medicina. É preciso dar um passo além.

Enquanto isso, aproveite a vida. A própria morte (do escritor Neil Gaiman) encara a vida assim:

É apenas isto: se você vai ser humano, tem um monte de coisas no pacote. Olhos, um coração, dias e vida. Mas são os momentos que iluminam tudo.  O tempo que você não nota que está passando… é isso que faz o resto valer.  Morte, in Sandman – Neil Gaiman

 

Uma dica: quer ler uma crônica ótima sobre o tema deste post? Leia “Sobre a Morte e o Morrer“, de Rubem Alves. Vai mudar seu olhar sobre o assunto.

* A OMS definiu Cuidados Paliativos em 2002: “Os cuidados paliativos são uma abordagem/tratamento que melhora a qualidade de vida dos pacientes e suas famílias diante de doenças que ameaçam a vida. Isso é feito através da prevenção e alívio do sofrimento por meio da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento da dor e outros problemas físicos, psicossociais e espirituais.

 

Leia mais:

 

Saiba mais sobre o World Hospice and Palliative Care Day que é celebrado em 10 de Outubro no site: http://www.thewhpca.org/about

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