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O caso da psicocirurgia é uma maneira de aprender com a história

O caso da psicocirurgia é uma maneira de aprender com a história
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Fomos maus espectadores da vida, se não vimos também a mão que delicadamente – mata. (Friedrich Nietzsche, Aforismo 69, Além do Bem e do Mal)

Aprendendo com a História

Por Renato Vieira*

Lisboa, 12 de Novembro de 1935. O Dr. Egas Moniz e seu respeitável assistente Dr. Almeida Lima, através da injeção de álcool realizada por seis perfurações na calota craniana de uma paciente portadora de doença maníaco-depressiva, realizam intencionalmente a lesão da substância branca do córtex pré-frontal com intenção de melhorar sintomas psiquiátricos. Egas, também idealizador da arteriografia, ganharia o prêmio Nobel de medicina em 1949, justamente pelo procedimento que ficou grosseiramente conhecido como “lobotomia”.

A casuística de Egas Moniz nem foi tão grande assim. Egas publicou duas séries de artigos sobre o procedimento, com 20 e 18 pacientes, respectivamente. Político, humanista, médico e pensador notável, a parcimônia de Egas com a lobotomia respeitava os passos fundamentais quando pisamos no desconhecido: avaliação criteriosa das indicações, dos resultados, dos malefícios, dos efeitos colaterais, etc. Embora a criação da psicocirurgia lhe tenha valido um Nobel, não foi o seu criador quem mais difundiu o procedimento, mas sim um correspondente seu americano.

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Longe do velho continente, nos EUA, Walter Freeman mantinha, com justiça e a semelhança de muitos de sua época, uma profunda admiração pelo mestre Egas, com quem se correspondeu intensamente. Conhecedor profundo de neuroanatomia, Freeman vislumbrou no método uma eficiente alternativa para amenizar o sofrimento de dezenas de milhares de pacientes mentalmente perturbados que lotavam os hospícios da época. Vale lembrar que até a década de 1950, com a introdução dos primeiros neurolépticos e antidepressivos, não se dispunha de praticamente de nenhum tratamento efetivo para doença mental. Embora à época já existisse a eletroconvulsoterapia, introduzida por Ugo Cerletti e Lucio Bini na Itália, em 1937, nem todos os pacientes respondiam à mesma, e os parâmetros para seu uso ainda estavam em desenvolvimento. Muitas vezes um diagnóstico de doença mental equivalia na época a anos de isolamento social, sem que a medicina conseguisse dar uma resposta à altura para o problema.

Freeman enxergou na lobotomia essa resposta esperada. Inicialmente em parceria com James Watts, Freeman realizou a primeira leucotomia pré-frontal em solo americano, dentro dos princípios legados pelo seu criador. Empolgado com os resultados iniciais, pouco a pouco foi se convencendo de que a quantidade de pacientes que necessitavam deste procedimento era tão grande que a técnica inicial, asséptica e realizada em ambiente cirúrgico, deveria ser modificada. O ideal, segundo Freeman, seria ter um procedimento simples, que não necessitasse de um centro cirúrgico, fácil de ser executado por qualquer pessoa treinada. Isso possibilitaria a disseminação do procedimento nos mais remotos locais dos EUA, facilitando o acesso de todos ao tratamento cirúrgico.

Em suas últimas versões técnicas desenvolvidas por Freeman, o procedimento era realizado da seguinte forma, grosseiramente resumida: o paciente era “anestesiado” por três sessões sucessivas de eletroconvulsoterapia; durante a inconsciência que sucede a tais procedimentos, um leucótomo semelhante a um picador de gelo era posicionado abaixo da pálpebra, apontado para a calota craniana através da lâmina orbital do osso frontal; com uma martelada, o leucótomo rompia o osso frontal (em sua lâmina orbital) e adentrava o encéfalo na região pré-frontal. O procedimento era então repetido contralateralmente, sendo que os dois leucótomos (esquerdo e direito) deveriam ser manuseados simultaneamente, evitando o deslocamento indesejado do cérebro e suas possíveis complicações como sangramentos e lesões em outras regiões do encéfalo. Este manuseio visava – como originalmente almejado por Egas Moniz – a lesão da substância branca do córtex pré-frontal. Retirados os leucótomos, o paciente sequer apresentava cicatrizes visíveis (1). Do ponto de vista comportamental são descritos casos de efetiva melhora com o procedimento, mas também inúmeros casos de sequelas graves, tanto comportamentais (apatia e perda de iniciativa extrema), como neurológicas (epilepsia, sangramentos, etc).

Freeman tornou-se um ativo divulgador deste tratamento. Ao longo dos anos seguintes, visitou inúmeros hospitais e clínicas americanas, demonstrando seu procedimento a plateias repletas de médicos, aprendizes, curiosos, familiares, etc. Convertido em uma espécie de “show-man” e profeta, não perdia a chance de demonstrar a facilidade com que se podia realizar uma leucotomia. Em um episódio anedótico, chamado a avaliar um paciente agitado em um hotel, realizou o procedimento lá mesmo, com a ajuda de um aparelho de eletroconvulsoterapia portátil. Estima-se que Freeman tenha realizado pessoalmente 3.439 procedimentos de leucotomia, e que só nos EUA cerca de 50 mil pessoas tenham se submetido a este procedimento, boa parte das vezes com indicações duvidosas.

Hoje o modismo passou. Embora haja indicações modernas da psicocirurgia, elas devem seguir protocolos bem específicos de indicação, com limitação aos casos gravemente refratários aos tratamentos disponíveis e com sofrimento importante associado. Após a resolução 226 de 2011 do Conselho Federal de Medicina, mesmo estes pacientes com indicação precisam ter seu procedimento aprovado por um corpo externo de peritos nomeado pelos conselhos regionais de medicina, com encaminhamento da aprovação ao Ministério Público. Alguns pacientes podem, de fato, se beneficiar de procedimentos psicocirúrgicos desde que realizados à luz da ciência atual, e dentro dos trâmites adequados para o mesmo. Mesmo as lesões propostas hoje e as técnicas para realiza-las são muito menos agressivas, mas permanece o estigma da história.

A farmacoterapia moderna das doenças mentais iniciada na década de 1950 com o lançamento da clorpromazina e da imipramina, bem como o avanço técnico de outros procedimentos biológicos (ECT, estimulação magnética transcraniana e estimulação cerebral profunda), tornou a psicocirurgia uma alternativa bastante remota. Em sua história, ocorreu com a psicocirurgia o que ocorre com inúmeros modismos: generalizam-se as indicações e se desprezam os riscos associados.

Algumas décadas após, olhamos estas histórias com assustada incredulidade. A banalização do procedimento e a forma teatral com que foi muitas vezes executado levam a algumas reflexões importantes que, creio, não perderam sua atualidade. É sobre este aprendizado que tratam as linhas abaixo.

A vontade de termos um tratamento eficaz nos faz alucinar tê-lo encontrado  

Parte da euforia da psicocirurgia se deveu à quase absoluta impotência terapêutica da primeira metade do Século XX no tratamento das doenças mentais. Esta situação predispõe a sociedade e seus profissionais em abandonar a cautela e lançar-se na embriaguez de uma esperança.

Casos recentes não faltam. No ano passado, por exemplo, foi veiculado na imprensa os supostos efeitos terapêuticos da fosfoetanolamina sintética, que ficou conhecida na mídia como “a pílula do câncer”. Apesar da ausência de evidências conclusivas sobre sua efetividade, milhares de pacientes esperavam, inclusive de meios universitários, receber este tratamento, recorrendo inclusive à justiça. Não é outro o poder do curandeiro, mas quando travestimos de ciência a esperança, não raro geramos situações de risco em massa à saúde pública.

Frente a uma inovação terapêutica radical é muito difícil que a sociedade saiba quais são os limites que devem ser respeitados

A ideia de tratar a doença mental de maneira cirúrgica não foi, propriamente, uma novidade. Já na idade média existia a pretensão de que a mesma pudesse ser tratada desta forma (sugiro ao leitor ver o quadro “A Extração da Pedra da Loucura” de Hyeronimus Bosch, 1475). Entretanto, Egas transformou esta possibilidade existente anteriormente apenas em relatos anedóticos ou esparsas observações clínicas em uma ferramenta real do arsenal terapêutico médico.

A inovação disruptiva coloca a sociedade em um vazio conceitual: até onde se pode ir com uma nova técnica? Até onde os princípios éticos antigos garantem o uso equilibrado de um procedimento? Como compreendê-lo na ausência de um referencial humano preparado para tal discussão? Quando olhamos algo já consolidado em nossas discussões é difícil entender este “vazio conceitual”. Mas não precisamos ir muito longe para encontrá-los em nosso quotidiano.

Tomemos, por exemplo, o caso da terapia gênica. As dúvidas atuais são grandes, e ninguém é portador de uma verdade que possa ser unanimemente aceita (2). Questões como o uso eugênico da engenharia genética; de restrições econômicas ao acesso ao tratamento; das dificuldades em separar rigorosamente o que seria um tratamento, ou o que seria uma “melhoria de performance”; etc. Talvez, daqui a algumas décadas, estas questões nos pareçam evidentes por si mesmas. No longo caminho do conhecimento humano, esta miopia é inevitável.

A sociedade deve se precaver de se afastar da ciência. O comportamento de “divulgador” de um método experimental não é um comportamento científico.

Há um momento na história de Freeman em que ele passa a ser algo mais que um cientista: na medida em que troca seus questionamentos por certezas, a pesquisa cuidadosa pela experimentação sem metodologia, a cautela pela prontidão, Freeman deixa progressivamente o campo da ciência para se instalar no campo da crença. Quando parte para suas inúmeras viagens de divulgação de seu método, ele se aproxima muito mais de um profeta que de um cientista.

O “messianismo terapêutico” não combina com a segurança do paciente. Em prol de se manter uma teoria ou terapêutica de pé, derrubam-se mil homens. O profeta nada teme: amolda tudo em suas explicações pré-determinadas, e nenhum argumento é capaz de freá-lo. A mecanização da lobotomia aos moldes descritos ignorava indicações ou evidência: perdeu a saudável dúvida que atormenta o cientista a cada novo passo.

Não raro o “messianismo terapêutico” costuma aparecer de maneira travestida de humanismo. Para sair do campo da saúde mental, onde não faltam exemplos neste sentido, podemos estudar o caso do “parto normal”. Todo gestor de maternidade conhece um par de exemplos de médicos que perseguem o parto vaginal “a qualquer custo”. Algumas vezes este “a qualquer custo” se transforma em política de saúde. Por exemplo, na questão das “casas de parto”, houve substancial atrito entre as instituições públicas que as defenderam e o CFM e a Febrasgo. Uma vez instituídas pelas portarias 888/99 e 985/99, que previam a possibilidade das casas de parto funcionar de maneira isolada de estruturas hospitalares de maior complexidade (hospitais e maternidades), restou às instituições de classe (CFM e FEBRASGO) a tarefa de se contrapor a este absurdo. A lógica da assistência é clara: deve haver possibilidade de atendimento emergencial e encaminhamento ágil a uma unidade hospitalar em caso de complicação. Entretanto questões ideológicas se interpõem nesta discussão, com prejuízos importantes à segurança de inúmeras gestantes.

É difícil reconhecer o absurdo quando nos deparamos com ele sem nunca tê-lo visto. O juízo é sempre um produto de elaboração posterior.

A ideia de “anestesiar” pacientes fora do ambiente hospitalar, utilizando Eletroconvulsoterapia, para lhe atingir o cérebro com algo semelhante a um picador de gelo nos parece absurda e desumana. Mas vale aqui ponderar que ela se torna desumana não por uma qualidade inata em si mesma, mas justamente por não ter oferecido à sociedade uma resposta real ao problema da saúde mental. É o fracasso do método que abre caminho para sua condenação moral, e não o inverso.

Diversos tratamentos em medicina teriam a mesma pecha moral se tivessem fracassado: o que dizer de um transplante com doador cadáver, por exemplo? Ou de cirurgias mutilantes? Ou dos inúmeros efeitos colaterais dos quimioterápicos?

Isso nos coloca em posição de desvantagem na avaliação de um procedimento novo: não podemos confiar que reconheceremos a barbárie tão logo nos deparemos com ela. Corremos este risco às cegas, incapazes de entender o que vivenciamos senão muitas décadas depois.

Edmund Burke disse que quem não conhece a história está condenado a repeti-la. Na verdade, já a repetimos diversas vezes nos inúmeros modismos terapêuticos. Não há quem saiba ao certo que papel terá uma inovação radical na prática clínica. E talvez não haja mesmo outra forma de responder a dúvida senão através da experimentação. Mas – ao que nos ensina a história – cegar-se aos fatos pela esperança de um tratamento novo, não discutir os limites de uma inovação, fazer de uma técnica um ato de fé ou crer na própria capacidade de discernir entre o uso e o abuso, são mais do que falhas humanas. São erros técnicos.

* Renato Vieira é Gerente Médico Corporativo no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo e consultor do IBSP.

Referências

  1. The Lobotomist: A Maverick Medical Genius and His Tragic Quest to Rid the World of Mental Illness. Jack El-Hai.Library of Congress. 2005. ISBN-10:0470098309
  2. Brave New Genome. Lander ES. N Engl J Med 373;1, July, 2015.

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