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Autonomia médica não é absoluta

Autonomia médica não é absoluta
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Sob o argumento da autonomia, algumas vezes, busca-se justificar atos sabidamente inseguros e de risco para a segurança do paciente

Por Renato Vieira*

O consenso deve ser sempre o primeiro objetivo a ser buscado por quem atua em áreas ligadas à segurança do paciente, sendo o convencimento uma ferramenta muito mais poderosa e duradoura do que a imposição baseada na hierarquia. O diálogo sempre abre portas, e cada frase que termina é o convite para que a próxima se inicie. A ordem termina com um ponto. Final. Fecha mais do que abre, poda mais do que brota.

Entretanto, quem atua na gestão de áreas assistenciais, cedo ou tarde, se depara com a necessidade de usar sua autoridade no intuito de zelar pela segurança do paciente. Frente ao risco assistencial continuado e à ausência de consenso, é seu dever utilizar as ferramentas que estiverem ao seu alcance na redução de danos possíveis. É seu dever humano e ético, e o gestor não deve postergá-lo quando for o momento de agir.

Quando estes momentos envolvem o profissional médico, é comum que venham à tona antigos questionamentos sobre a autonomia do exercício da medicina. Sob o argumento da autonomia, algumas vezes, busca-se justificar atos sabidamente inseguros e de risco: a prescrição de antibióticos sem indicação clara, a recusa sistemática e sem justificativa na adesão a protocolos de segurança, ou o pedido de exames de modo pouco criterioso são alguns exemplos disso. Felizmente, o cenário vem mudando, e situações extremas têm – pouco a pouco – se tornado menos comuns.

Mas quando emergem posições defensivas baseadas no princípio da autonomia médica, via de regra temos a interpretação pelo profissional de que a mesma seria como “um cheque em branco”, que autorizaria o médico a tomar a conduta que lhe aprouver a cada caso. Será de fato assim?

O Código de Ética Médica vigente coloca a autonomia dentro de seus princípios fundamentais. Textualmente, dentro do “Capítulo I”:

“VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.” (1)

Devemos reparar que no parágrafo oitavo, o princípio da autonomia visa a garantir “a eficiência e a correção” da atividade médica. Esta é a ideia. Quando a atividade é distanciada de ciência bem estabelecida, e leva o paciente a risco, cessa a autonomia médica. O próprio Conselho Federal de Medicina dá mostras de que leva este princípio dentro da interpretação acima. Vejamos alguns exemplos:

 

a) Dentro do próprio Código de Ética Médica várias passagens reforçam o compromisso do médico com a boa prática. Transcrevo alguns artigos para exemplificação:

Capítulo I (Princípios), parágrafo XVI – Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

Art. 1º (É vedado ao médico). Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Art. 14. (É vedado ao médico). Praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País.

b) Outro exemplo de limite à autonomia do médico pode ser visto na questão da restrição ao uso abusivo de antibióticos. Há mais de 15 anos, desde a resolução 1552 de 1999, o CFM condiciona o uso de antibiótico às diretrizes dos Serviços de Controle de Infecção Hospitalar:

“Art. 1º – A prescrição de antibióticos nas unidades hospitalares obedecerá às normas emanadas da CCIH.
Art. 2º – As rotinas técnico-operacionais constantes nas normas estabelecidas pela CCIH para a liberação e utilização dos antibióticos devem ser ágeis e baseadas em protocolos científicos.
Parágrafo 1º – Os protocolos científicos não se subordinam a fatores de ordem econômica.
Parágrafo 2º – É ético o critério que condiciona a liberação de antibióticos pela CCIH à solicitação justificada e firmada por escrito.” (2)

c) De forma geral, os pareceres emitidos pelos Conselhos de Medicina de diversos estados têm se colocado de modo alinhado com esta interpretação, hora condenando limitações arbitrárias ao exercício médico (via de regra associadas a interesses pecuniários), hora limitando a própria ação médica, quando a mesma se desvia de boas práticas (individuais e populacionais) e protocolos consagrados. Cito, abaixo, dois pareceres neste sentido:

Parecer do CREMESP, No. 133260, de 05/02/2013, sobre a realização de protocolos de encaminhamento para nível primário de assistência: “A autonomia do médico não pode se sobrepor a organização da assistência à saúde que atinge toda a população e não um médico ou um paciente em particular.”

Parecer do CRM-PR, No. 2009, de 25/10/2008, onde houve questionamento sobre a possibilidade do hospital impor rotinas de diluição de medicamentos na farmácia, baseadas em protocolos: “Havendo recomendação expressa da Direção do Hospital para que as novas normas sejam cumpridas, desde que o valor das mesmas tenha sido conferido e aprovado, não vejo como possam surgir sanções ao hospital em caso de dano, o que ocorrerá, entretanto, certamente para o médico responsável, que a elas não se subordinar, se o dano, comprovadamente, tenha sido provocado pela sua negativa”

Além da base conceitual, a literatura científica vem acumulando evidências de que a prática gerenciada da medicina (e da assistência à saúde) atinge desempenhos superiores quando comparada à prática desregulada. Diversos artigos têm mostrado melhorias de desfecho e menor incidência de complicações quando a prática médica ocorre sob supervisão, tanto em cenário de ensino (3), como fora dele (4). Uma metanálise da Cochrane mostrou que a implantação de linhas de cuidado estruturadas tem efeitos significativos no risco de complicações e desfechos assistenciais, sem piora dos custos ou tempo de permanência (5). Em níveis populacionais, a gestão da prática assistencial também tem provado ser sobremaneira benéfica (6).

O que aqui está em jogo não é uma disputa estéril entre o gestor e o médico, pelo simples amor ao poder. O que é disputado é, antes, por qual princípio o hospital será organizado: por princípios éticos e científicos amplamente discutidos, ou pelo arbítrio das vontades individuais, quaisquer que sejam? Será território proibido ao pensamento questionador, ou ambiente vivo e inovador que quebra paradigmas? A boa prática será posta de escanteio por interesses comerciais ou hierárquicos, ou ambos serão construídos justamente pelo ambiente de alta performance? Não é o poder individual que é questionado na violação, mas todo o princípio norteador da assistência.

Há muitos séculos na China o general T´ai kung aconselhou o rei Wen:

“Se vemos bem, mas somos lentos a agir, se o momento de agir chega e hesitamos, se sabemos que algo está errado mas pactuamos com isso – é nessas três situações que o caminho fica ausente. (…) Assim, quando a retidão se sobrepõe ao desjo, florescemos” (7).

Gestores da saúde deveriam lembrar sempre deste conselho.

 

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