A crise de saúde gerada pela disseminação mundial do novo coronavírus fez com que milhões de consultas, exames e cirurgias eletivas fossem canceladas em todo o mundo. Artigo publicado no British Journal of Surgery (1) estima que, ao interromper os serviços hospitalares de rotina, a pandemia de COVID-19 fez com que 28,4 milhões de operações fossem adiadas ao longo das 12 semanas mais incisivas da pandemia no globo.
Os impactos dessa paralisação são inúmeros. Por exemplo, é intuitivo e provável que pacientes com condições mais complexas, e que não puderam realizar procedimentos terapêuticos, tenham tido prejuízo em termos de prognóstico; outros tantos podem ter tido atraso em seus diagnósticos; do outro lado, o impacto econômico, em específico na rede privada, onde os hospitais acabaram por assistir à suas receitas serem drasticamente reduzidas enquanto se dedicavam à atender os pacientes infectados pelo patógeno que rapidamente se espalhou.
Contudo, passados quatro meses do primeiro diagnóstico de COVID-19 no Brasil, os hospitais já se prepararam para que possam voltar a realizar cirurgias de modo seguro.
No dia 9 de junho, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) reestabeleceu os prazos máximos de atendimento estipulados pela Resolução Normativa nº 259 (2) que tinham sido flexibilizados em março a fim de priorizar os atendimentos relacionados à pandemia, também impulsionando que tanto as consultas quanto exames e outros procedimentos, inclusive os cirúrgicos, começassem a ser retomados.
Essa publicação da ANS se embasou na Nota Técnica nº 6 (3) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que, publicada em 29 de maio, apresenta as principais orientações para que os serviços de saúde possam retornar as cirurgias eletivas garantindo a segurança do paciente e, também, das equipes clínicas envolvidas nos procedimentos.
A nota aborda a organização pré-cirúrgica, a capacitação das equipes, a importância dos equipamentos de proteção individual (EPIs) além de trazer mais detalhes sobre o ambiente cirúrgico, procedimentos laparoscópicos e a retomada, em si, das cirurgias eletivas.
Um dos alertas incluídos na Nota Técnica nº 6 da Anvisa diz respeito às particularidades do Brasil que, por ser um país continental, percebe a pandemia se desenvolver de forma diferente em cada região. O texto diz que a decisão de operar ou não o paciente deve considerar a situação epidemiológica local seguida pela avaliação dos gestores e do diretor técnico do serviço de saúde sobre a capacidade de receber pacientes eletivos e sobre o caso clínico de cada paciente.
A publicação sugere que a área geográfica, para retomar os procedimentos eletivos, deve ter assistido à redução sustentada de novos casos de COVID-19 durante pelo menos 14 dias consecutivos; deve haver número seguro de leitos de unidades de terapia intensiva disponíveis, bem como de leitos regulares para o atendimento pós-cirúrgico dos pacientes.
Há, também, uma lista de observações importantes como, por exemplo, a indicação de que os profissionais de saúde não devem utilizar máscaras N95 ou PFF2 durante procedimentos cirúrgicos, visto que as válvulas desses equipamentos permitem a saída do ar expirado pelo profissional, o que pode contaminar o campo operatório, o paciente e os outros membros da equipe.
Tratando de detalhes técnicos sobre as salas de operações, a nota da Anvisa alerta que em procedimentos cirúrgicos com geração de aerossóis é recomendável que o paciente permaneça em sala com pressão negativa de pelo menos -5Pa em relação a antessala, assim há a redução da disseminação do vírus.
A Anvisa também sugere que os hospitais instituam uma Comissão de priorização da agenda cirúrgica para o momento da pandemia de COVID-19 composta pelo diretor técnico, cirurgiões, anestesistas, infectologistas e enfermeiros.
Associação entre coronavírus e complicações cirúrgicas
Um estudo observacional italiano publicado pelo JAMA (4) questiona se a COVID-19 está associada à mortalidade e complicações cirúrgicas precoces. Realizado com 41 pacientes cirúrgicos com diagnóstico de infecção pelo novo coronavírus e 82 pacientes controle sem a doença, a pesquisa observou diferenças significativas em relação às taxas de mortalidade e de complicações.
Este estudo que foi realizado nas unidades de cirurgia geral, vascular, torácica, ortopédica e neurocirurgia do Hospital Spedali Civili (Brescia, Itália) incluiu pacientes que foram submetidos a tratamento cirúrgico e tiveram resultados positivos para o COVID -19 antes ou dentro de uma semana após a cirurgia. Pacientes com COVID-19 foram pareados com pacientes sem COVID-19 com uma proporção de 1:2 para sexo, faixa etária, escore da Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA) e comorbidades registradas na calculadora de risco cirúrgico do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade Cirúrgica do Colégio Americano de Cirurgiões. Pacientes com mais de 65 anos também foram comparados com o escore da Escala de Fragilidade Clínica.
No estudo, dos 41 pacientes operados emergencialmente, 33 tinham sido diagnosticados com COVID-19 no pré-operatório e 8 tiveram resultado positivo no prazo de cinco dias após o procedimento.
A mortalidade em 30 dias foi significativamente maior para aqueles com COVID-19 em comparação com pacientes controle (Odds Ratio de 9,5; IC95%, 1,77-96,53). Além disso, pacientes com COVID-19 tiveram maiores chances de complicações pulmonares (Odds Ratio de 35,62; IC95%, 9,34-205,55), e de complicações trombóticas (Odds Ratio de 13,2; IC95%, 1,48-∞). Diferentes modelos identificaram o COVID-19 como a principal variável associada a estas complicações.
A despeito do estudo ser apenas observacional, com poder de apenas gerar hipóteses, é possível interpretar que o estresse cirúrgico seja fator importante para a evolução dos casos de COVID-19. Em um ambiente dinâmico como o que vivemos atualmente, e ainda sem evidências mais contundentes como os ensaios clínicos, podemos tirar como lição a potencial necessidade de pesquisar a infecção por coronavírus ativamente em pacientes candidatos a procedimentos cirúrgicos na fase pré-operatória com RT-PCR. Para os casos positivos, parece sensato adiar aquilo que é extremamente eletivo, e nos casos de urgência, preparar o paciente para potenciais riscos no pós-operatório.
Referências:
(2) Resolução Normativa nº 259 – ANS
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