O processo estruturado de comunicação com o paciente e seus familiares quando existe um dano não intencional grave, ou potencialmente grave, durante o processo da assistência é conhecido pelos profissionais de saúde como disclosure. O termo é uma palavra da língua inglesa e costuma ser traduzida como “revelação” ou “abertura”.
“Além de ser um pedido formal de desculpas da instituição de saúde, o disclosure é o momento em que a mesma reforça seu compromisso em corrigir falhas, mudar seus processos e lutar para que um determinado evento não se repita, compartilhando análises e ações com o paciente afetado, ou seus cuidadores”, diz Renato Vieira, Gerente Médico Corporativo no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Quando as instituições se engajam nesta comunicação, existe um aprendizado bilateral. Do lado das instituições, há um enorme reforço no compromisso de seus colaboradores com a segurança assistencial, e com as ações de melhoria. Do lado da sociedade, aprofunda-se a consciência de que as falhas dos processos de saúde são problemas reais que precisam ser enfrentados de maneira assertiva e construtiva.
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Em entrevista exclusiva para o IBSP – Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente, o médico discute o tema, apontando razões para fazer o disclosure, prós e contras e até dando dicas de como deve ser feito a fim de garantir a melhor comunicação possível.
IBSP – Por que temos que fazer disclosure após incidente com dano?
Renato Vieira – Além das questões éticas e legais envolvidas, há um aspecto bastante pragmático no “disclosure”: frente a um evento adverso grave, a instituição é forçada a se posicionar. Não existe neutralidade possível: a ausência de uma comunicação sincera e proativa em tais circunstâncias já é, por si só, uma forma de comunicação. A pior delas, evidentemente.
IBSP – A falta de comunicação pode ser um desastre maior que o evento adverso causado?
Renato Vieira – O que espanta não é a realização do disclosure por algumas instituições, mas justamente o contrário: porque tanta resistência dos serviços de saúde em instituir fluxos claros de comunicação de eventos adversos. Na ausência de fluxos institucionais, a comunicação em tais casos é caótica e desordenada. O evento costuma, então, ser comunicado da pior forma possível, por investigação da família, comentários com tom de fofoca ou no meio de um processo judicial. E, no meio disso, as instituições deixam de se comprometer com as correções das causas principais que geraram o evento.
IBSP – Quais os pontos positivos e negativos do disclosure? Faz parte da cultura de segurança do paciente?
Renato Vieira – Os receios mais comuns dos profissionais quando precisam comunicar um evento adverso ao paciente ou familiar envolvem temores de processo, vergonha, culpa, ou, mais instintivamente, fantasias sobre a reação dos mesmos quando ouvirem o que será comunicado.
É difícil imaginar que – mesmo na concretização destes temores – possamos atribuir ao disclosure um efeito negativo. A experiência mundial tem mostrado uma tendência a diminuir a litigância judicial quando existe um fluxo claro e bem-estruturado de comunicação de eventos adversos. Ainda que, pontualmente, possamos admitir que a comunicação da falha assistencial possa desencadear o desejo de reparação judicial, a regra é que este desejo já exista antes mesmo do processo de disclosure e, que, algumas vezes, o desejo de reparação possa ser satisfeito com a demonstração da seriedade com que a instituição conduz a relação com seu paciente e como corrige suas falhas.
IBSP – As organizações de saúde estão preparadas e apoiam esta iniciativa de transparência?
Renato Vieira – Embora não haja pesquisas amplas sobre a cultura de comunicação de eventos adversos no Brasil, a percepção é que exista um cenário bastante heterogêneo. Instituições com histórico de vanguarda na adoção das boas práticas de segurança já perceberam a importância do disclosure e possuem fluxos e práticas direcionados por política institucional. Mas, infelizmente, não é a maioria.
IBSP – As acreditações, nacionais e internacionais, deram um novo fôlego à prática do disclosure?
Renato Vieira – Sim, claro, na medida em que o incluem em suas diretrizes de boas práticas. Ainda assim, há uma enorme distância entre ter um processo de disclosure para corrigir uma não conformidade apontada em auditoria, e tê-lo por não enxergar possibilidade de conduzir de maneira diversa seus eventos Adversos. E os auditores, em sua maioria, são capazes de perceber esta distância.
IBSP – As lideranças das instituições estão capacitadas e treinadas para fazer o disclosure?
Renato Vieira – Um líder é, ao mesmo tempo, criador e criatura de sua instituição. É um processo dialético: é ele quem deve exercer pressão e forçar o crescimento de sua empresa. Mas é ele, também, que dela adquire as debilidades e dificuldades. Neste sentido, as lideranças estão tão capacitadas quanto suas instituições, seja por ação, seja por aculturação.
É muito provável que apenas uma minoria das lideranças esteja confortavelmente capacitada e treinada para um processo de disclosure, e que muitas delas possam ainda não ter percebido que não se trata de opção, mas de necessidade. Ainda assim, são elas que devem conduzir as mudanças. Temos uma sociedade mais exigente com os serviços médicos: a informação é encarada como direito de todos e não há mais a inibição em questionar a autoridade. Este cenário exige novas lideranças, ou novas posturas nos mesmos líderes. A demora em se perceber isso é prejudicial a todos.
IBSP – O erro na administração da mediação é o mais comum? Quais dicas o profissional (médico e enfermeiro) pode seguir para evitar?
Renato Vieira – Ainda que possam variar em sua metodologia, boa parte dos estudos apontam as falhas associadas à medicação como eventos extremamente comuns no meio hospitalar. Estas falhas podem envolver desde erros de dose, de identificação, de via de administração, de droga administrada, consequências variáveis ao paciente. Boa parte das vezes estas falhas sequer são percebidas ou registradas. Como todo risco, sua prevenção está ligada à adesão a protocolos institucionais, treinamento das equipes e à promoção de uma sólida cultura de segurança.
IBSP – Para finalizar, a conduta de comunicação deve ser respeitosa?
Renato Vieira – Não é difícil entendermos que os afetados pelo evento adverso enfrentarão uma ambivalência importante neste momento: por mais que o diálogo seja respeitoso e acolhedor, o evento sofrido é amargo e doloroso. Esta ambivalência torna o diálogo bastante sensível à incoerência: a instituição tem de mostrar vigoroso comprometimento com o que é dito, seja na coerência da comunicação de seus diversos membros e setores, seja na demonstração efetiva de mudanças de processos baseadas no aprendizado proporcionado pelo evento. Nada pode ser pior em um disclosure do que a hipocrisia de um discurso desvinculado da prática.
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