Com o recente caso do humorista Paulo Gustavo que, aos 42 anos, contraiu a COVID-19 e infelizmente veio a falecer após mais de 50 dias internado, a discussão da utilização da ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorpórea) como terapia para pacientes infectados pelo novo coronavírus tomou ainda maiores proporções.
Como decidir se o mecanismo trará reais benefícios aos pacientes? O sistema de saúde está apto a proporcionar essa adesão? É um tratamento que promove a equidade? Em uma reunião de bioética realizada pelo Hospital Sírio Libanês envolvendo especialistas de diferentes segmentos, o tema foi debatido trazendo luz a percepções extremamente relevantes.
Na ocasião, Luís Cláudio Correia, cardiologista e professor de medicina baseada em evidências, reforçou a necessidade de compreensão se a adoção da ECMO em casos de COVID-19 remonta ao paradigma do paraquedas*. Segundo ele, é preciso questionar: estamos diante de um paradigma do paraquedas com eficácia inquestionável ou precisamos de evidências de que a ECMO é benéfica e eficaz para pacientes infectados pelo novo coronavírus?
O que o especialista aponta é que se existem ensaios clínicos randomizados que foram considerados éticos, que sugerem que 50% dos pacientes do grupo controle sobrevivem, chegaríamos à percepção de que não se trata de um paradigma do paraquedas. Assim, o questionamento quanto à utilização da ECMO está voltado a moldar e aumentar a probabilidade de sobrevida.
Para Correia, estamos vivendo, no Brasil, uma inversão da hierarquia que precisa ser observada. “Primeiro precisamos avaliar o quanto a solução é efetiva para depois analisarmos o custo. Muitas vezes vemos essa inversão que reduz a possibilidade de nos aprofundarmos nessa primeira questão que é complexa”, disse.
Para avaliação, o especialista fala sobre dois estudos existentes. O primeiro (1) mostra redução de mortalidade com tratamentos com ECMO, porém envolve risco de viés de desempenho, já que na randomização, todos os pacientes que entraram em ECMO foram transferidos de hospital, enquanto os que não entraram foram mantidos no local de origem. E o segundo (2), de melhor qualidade, não traz viés de desempenho, porém ainda não consegue rejeitar a hipótese nula. “Estudos com tamanho amostral moderado que nos levam à necessidade de reconhecer a incerteza, a possibilidade de erro aleatório, e não conseguem caracterizar bem o tamanho do efeito”, declarou. Segundo ele, juntando os dois ensaios temos uma real percepção de benefício com redução relativa do risco, porém intervalo de confiança que vai de 40% a 6%.
Essa avaliação seria feita de forma fria, mas em se tratando de uma pandemia, há uma necessidade de encaixar essas análises no contexto mundial atual. No caso, a ECMO é um tratamento individual. Ao ser utilizado, beneficia apenas aquele paciente, sem expansão do benefício para a sociedade. Diferentemente da vacinação, que quando uma pessoa é imunizada também contribui para proteção dos outros.
Além disso, Correia enfatiza que apesar de ser um tratamento individual, é preciso considerar o pensamento ecológico. Isso significa que há consequências não intencionais potencialmente sistêmicas na adoção da ECMO em um ambiente que vive uma limitação de recursos e que pode sofrer um desequilíbrio ainda maior graças à implementação da tecnologia de alto custo.
No Brasil, que oferta um atendimento de saúde universal e gratuito, há uma grande preocupação com a justiça e a equidade, o que leva à necessidade de avaliar se é correto ofertar altas tecnologias apenas em alguns locais de referência, enquanto outras regiões não teriam acesso.
Dados e escolhas
Laerte Pastore, gerente médico de pacientes críticos do Hospital Sírio Libanês, trouxe dados que auxiliam na tomada de decisão. Segundo o especialista, até 21 de maio, o mundo tinha 6.673 pacientes comprovadamente infectados pelo novo coronavírus submetidos à ECMO ao redor do mundo sob uma taxa de mortalidade de 49%.
Pastore apontou que existem as indicações técnicas puramente médicas – como variáveis respiratórias – e as mecânicas, como no caso de pacientes que necessitaram de um nível de ventilação mecânica lesivo para o pulmão, agravando a possibilidade de irreversibilidade.
Além disso, quanto maior a idade, o número de comorbidades e outras disfunções orgânicas, menor a chance de recuperação. “Vemos que pacientes com 70 anos ou mais têm mortalidade extremamente elevada de 93%. Aqueles com menos de 70 anos tem chance de sobrevida de 60%. Também observamos que quando associamos ECMO à diálise, a mortalidade sobe para cerca de 80%. Ou seja, a probabilidade de sucesso é maior quando a disfunção mais grave é unicamente a pulmonar”, pontuou.
Além dos critérios técnicos, é preciso considerar o fato de que a ECMO é um tratamento extremamente especializado, caro e que requer profissionais altamente treinados. Principalmente agora, em um momento pandêmico onde há sobrecarga dos serviços de saúde, se há indícios de lesões potencialmente irreversíveis, a ECMO não deve ser indicada. Isso porque em sistemas colapsados, ter pacientes em ECMO pode prejudicar o funcionamento dos serviços comprometendo a assistência aos outros internados.
Daniel Forte, presidente do Comitê de Bioética do Hospital Sírio Libanês, trouxe outro ponto importante e que deve ser considerado na tomada de decisão: entender os valores do paciente utilizando uma comunicação empática. “Para algumas pessoas, o maior sofrimento seria perder a lucidez e a independência. Para outros, é importante ter qualquer nível de lucidez para interação simples com a família. As pessoas são diferentes e se eu não consigo entender o que é importante para cada um, e o que é considerado sofrimento, não terei a decisão adequada”, diz sugerindo que assim como é feita uma anamnese da doença, deve ser feita uma anamnese de valores.
Resumindo todo o debate, Forte pontuou que “para a indicação da ECMO ser eticamente adequada, é preciso ter um racional biológico forte, ou seja, evidências de que para pessoas naquela situação há chances minimamente razoáveis de reversão; compreender os valores daquela pessoa; e analisar se há, na infraestrutura local, condições técnicas e consenso entre as equipes que assistem ao paciente para tomar a decisão de seguir ou não por esse caminho”.
*Paradigma do paraquedas – Dentro do conceito da saúde baseada em evidências há sempre uma busca por estudos de alta qualidade científica que suportem a tomada de decisão. Porém, nem sempre esses estudos estão disponíveis e cabe, às equipes, avaliar o momento de adotar determinadas condutas mesmo sem evidências. Nesses casos, deve-se considerar a plausabilidade extrema ou a gravidade extrema. E aqui se encaixa o paradigma do paraquedas. Não precisamos de um estudo clínico randomizado para saber que entre indivíduos que saltam de um avião, o paraquedas é melhor do que o placebo para reduzir a mortalidade.
Referências:
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