Profissional de saúde conversa com paciente: modelo de cuidado centrado no paciente enfatiza comunicação (mangostock/Bigstock)Marcela Buscato
Instituições e profissionais de saúde se preocupam com métodos, tecnologias e treinamento para evitar erros. Mas o que a advogada paulistana Lívia Callegari, de 42 anos, encontra muitas vezes quando recebe em seu escritório casos que chegam a conselhos regionais ou à Justiça é um tipo de falha mais básico: de comunicação. “Às vezes, tenho que pegar profissionais pela mão e ensinar aspectos básicos de comunicação e como lidar com os pacientes”, afirma Lívia, também pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
As instituições de saúde enfrentam dificuldades parecidas às dos profissionais ao se comunicar com os pacientes. Se as informações transmitidas não são claras e completas, o paciente fica com a sensação de que falta transparência e, daí, o que resta é desconfiança. O modelo de cuidado centrado no paciente – bem conhecido na teoria – prima pela qualidade de comunicação. O famoso processo de decisão compartilhada é, em essência, o resultado de uma boa comunicação: paciente e médico discutem os valores importantes para o paciente e as melhores alternativas de tratamento dentro desse contexto.
Na entrevista a seguir, Lívia, especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra e em Bioética pela Universidade de São Paulo, explica as repercussões práticas e jurídicas das dificuldades de comunicação dentro dos serviços de saúde.
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IBSP – Por que a comunicação é tão importante?
Lívia Callegari – Em muitos dos casos que recebo, vejo que o problema foi na relação médico-paciente. Por mais correto que tenha sido o profissional, se a relação médico-paciente não foi boa, ele terá algum problema lá para frente. No trabalho de treinamento, as instituições de saúde têm de voltar um passo atrás: ensinar a como se comunicar com o paciente porque as pessoas não sabem.
IBSP – É um problema de falta de formação, de falta de tempo ou de profissionais de saúde pensarem que não adianta explicar para os pacientes aspectos técnicos?
Lívia – Tudo entra nessa situação. O médico sai um técnico da faculdade, mas não sabe se comunicar com pessoas. A falha está, às vezes, nessa falta de formação humanitária, de saber lidar com o outro, de se colocar no lugar do outro. Não adianta falar em uma linguagem técnica que a maior parte das pessoas não entenderá. Também tem o problema da falta de tempo, sem dúvida. Na pressa, você não consegue entender a história de vida da pessoa nem se expressar adequadamente, de maneira a surgir empatia como base dessa relação.
IBSP – Quais as implicações práticas da falta de comunicação?
Lívia – A partir do momento em que não há o estabelecimento de empatia, de uma relação de confiança, o paciente ficará sempre desconfiado. De repente, ele pode se ater ao caso da vizinha que passou por algo semelhante. Ele não considera a reação individual de cada organismo a um procedimento e pensa: “por que deu certo com ela e não comigo? Deve ser erro médico”. Às vezes, não é nem erro que acontece, mas a falta de uma informação. O profissional não explicou direito que o tempo de recuperação é diferente para cada pessoa, o paciente está cheio de expectativas e acaba frustrado em algum aspecto. Em muitos casos, a Justiça, pelo menos em São Paulo, se não tem como pegar pela parte técnica, analisa falha de informação. Daí cabe indenização por dano moral porque houve uma falha que afetou a decisão do paciente.
IBSP – O termo de consentimento não deveria servir para melhorar a comunicação e prevenir eventuais lacunas de informação? Na prática, parece que ele virou apenas mais um papel para o paciente assinar.
Lívia – É isso mesmo. O termo de consentimento é a ponta final do que existiu na relação médico-paciente. Ele é um papel que documenta o que foi falado. Não é um papel para ser jogado. É um documento do paciente, que faz parte da história de vida dele. Mas aí o profissional faz o termo e acha que ele vai blindá-lo de qualquer problema futuro. Não é bem assim.
IBSP – Como é um termo de consentimento bem elaborado?
Lívia – Em primeiro lugar, o termo tem de ser específico para cada procedimento. Não adianta pegar um modelo pronto. Ele é um documento dinâmico, que tem de ser modificado, atualizado, em cada experiência. O termo bem elaborado é construído em conjunto: médico e paciente. É possível comprovar que o paciente entendeu o o que aconteceria com ele. Pode-se deixar algumas linhas para o paciente escrever de próprio punho que entendeu, como parte da decisão compartilhada.
IBSP – A comunicação está na base do processo de decisão compartilhada e da própria filosofia do cuidado centrado no paciente. Isso já acontece na prática?
Lívia – A partir do momento em que um indivíduo tem uma informação clara, robusta, ele também se torna responsável pelo o que acontece com ele ou com um familiar, se ele é considerado o cuidador. Ele tem que saber dividir risco. Só que parece que não há interesse de tornar todo mundo responsável pelo sistema. Parece que o paciente será sempre a vítima e o outro lado será sempre o vilão. Precisamos sair dessa concepção e tornar paciente responsável, inclusive pelo autocuidado dele.
IBSP – Mas o paciente hoje já tem, de fato, esse poder? Como se o termo de consentimento, por exemplo, é dado na hora do procedimento, sem explicação, sem a possibilidade de mudanças?
Lívia – A peça-chave é a comunicação entre profissional e paciente. É a partir dela que você consegue desmembrar: será que a comunicação foi adequada para o paciente exercitar sua autonomia, a decisão compartilhada? E com o resto da equipe também. Quantas falhas não acontecem no sistema por falta de comunicação?
IBSP – Quando falamos de falhas no sistema, é preciso considerar que muitas vezes alguém foi levado ao erro pelo contexto ou por uma circunstância, não por negligência ou imprudência. Juridicamente, já se faz essa distinção?
Lívia – Não existe esse tipo de pensamento no judiciário: será que o sistema ou o ambiente de trabalho em que ele estava não o induziu ao erro? Será que quem tem que rever a condição de trabalho é a instituição? Não estamos preparados para ter essa concepção sistêmica. Na cabeça do judiciário, ainda é apontar o dedo para uma pessoa só. Em complicações cirúrgicas decorrentes de uma falha de material, por exemplo, isso não passa pela cabeça do judiciário. É aquela visão superficial: vou apontar o dedo para quem? É isso e vai ter a punição.
IBSP – Hoje, encoraja-se a cultura justa, que permite transparência sobre o erro e leva a melhorias dentro do sistema. A mentalidade punitiva fora dos serviços de saúde é um empecilho ao fortalecimento da cultura justa no setor?
Lívia – Sim, mesmo porque a gente não tem uma legislação que mude essa forma de pensamento. Além disso, ainda temos aquela concepção de que existe o corporativismo das classes profissionais. Existe, sim, em algumas instituições que modificam prontuário, que fazem coisas para acobertar só para não ter nenhuma desfecho e que disfarçam, inclusive, em propostas de segurança do paciente. Em algumas instituições, a cultura de segurança está perdendo a essência e está virando uma grife. Na prática, erros continuam existindo, danos continuam sendo causados para o paciente sem uma modificação de cultura efetiva.
IBSP – O sistema de remuneração baseado em serviços, não em desfecho, contribui para esse cenário em que a cultura de segurança poder ser mais imagem do que prática?
Lívia – Com certeza! A partir do momento em que você pede exames ou procedimentos desnecessários, você aumenta o risco em todos os sentidos. O grande problema desse sistema de remuneração é não preconizar a qualidade. Falamos sempre do excesso – mas tem algumas instituições que também estão trabalhando com a falta. Há planos de saúde de autogestão que fazem protocolos sem evidência científica visando apenas a uma economia subjetiva. Só que, de qualquer forma, está aumentando o risco. Sempre que nos afastamos da qualidade, é preciso ficar atento.
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