Um dos maiores estudos sobre a adoção de um programa de qualidade para reconciliação medicamentosa, o projeto MARQUIS, chegou ao fim. Foram três anos de pesquisa, 1.600 pacientes entrevistados em cinco hospitais americanos e um conjunto de 11 ferramentas para serem implementadas nas instituições entre formulários-modelo, treinamentos e orientação in loco conduzidos por líderes de boas práticas (1). A hipótese inicial era a de que, ao treinar e oferecer condições para a elaboração de listas minuciosas e precisas dos medicamentos usados pelos pacientes antes e durante a internação hospitalar, diminuiriam as chamadas discrepâncias. São as omissões e os esquecimentos que fazem com que os pacientes saiam do hospital ou sejam transferidos para outros setores sem a prescrição de drogas importante ou com a indicação de medicamentos que podem interagir de maneira danosa com outros já usados (continua).
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Os pesquisadores não usaram exatamente essa palavra, mas lê-se nas entrelinhas da conclusão que os resultados do estudo foram desapontadores. “A implantação com mentoria de um programa multifacetado de qualidade foi associado a uma redução no número total de discrepâncias, mas não de discrepâncias potencialmente perigosas”, escreveram os autores do estudo, patrocinado pela americana Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ) e publicado no BMJ Quality & Safety. “Com várias melhorias nas ferramentas e lições aprendidas sobre a implementação, esperamos que tentativas futuras sejam ainda mais bem-sucedidas.” Ou seja, o principal objetivo, que era reduzir as discrepâncias potencialmente perigosas, não foi alcançado.
O resultado não diminui a importância do estudo, considerado metodologicamente bem-elaborado, – muito menos lança dúvidas sobre a utilidade da reconciliação medicamentosa. “Muitos estudos bem elaborados demonstram que programas de reconciliação medicamentosa podem reduzir com sucesso discrepâncias potencialmente perigosas de medicações e alguns estudos mostram benefícios em toda a cadeia”, afirmaram pesquisadores canadenses, autores de uma análise sobre o MARQUIS (2).
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Intervenções que envolveram programas detalhados de reconciliação, com a inclusão de farmacêuticos na equipe, apontaram redução de readmissões, inclusive em pacientes idosos,público em que a polifarmácia é frequente e a reconciliação ainda mais desafiadora. Em um estudo com três grupos randomizados, os pacientes que participaram de um programa cuidadoso de reconciliação medicamentosa tiveram menos chances de serem readmitidos no hospital até 180 dias após a alta do que os pacientes que estavam no grupo controle (sem intervenção) e dos que estavam no grupo da reconciliação padrão (3).
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Os resultados modestos do MARQUIS ressaltaram um dos aspectos mais difíceis da reconciliação medicamentosa: a implementação e a execução são, de fato, complicadas. “Os desafios encontrados pelo MARQUIS ressoam com outros relatórios de implementação”, escreveram os canadenses autores do editorial que acompanhou a publicação do novo estudo.
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Ao descrever a adoção de um programa de reconciliação medicamentosa em dois centros de saúde universitários do Canadá, pesquisadores elencaram os principais desafios encontrados: a natureza inerentemente multiprofissional da atividade, que envolve clínicos, farmacêuticos e enfermagem; o fato de ela exigir várias etapas (entrevista, registro, conciliação final); a falta de tempo e sobrecarga de trabalho da equipe, além da alta rotatividade dos funcionários, que acaba desperdiçando horas gastas em treinamento da equipe (4).
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A reconciliação medicamentosa faz parte do dia a dia de muitos hospitais por estar prevista em regulamentações e ser um pré-requisito de acreditações. A Joint Commission e Accreditation Canada incorporaram a exigência desde 2005 (5). Mas existem problemas de qualidade com frequência. Levantamentos sugerem erros importantes mesmo quando os registros do pacientes indicam que a reconciliação medicamentosa foi realizada. Uma revisão sistemática feita com 22 estudos, englobando o histórico de 3.755 pacientes, mostrou erros em 67% dos casos: no mínimo uma omissão de droga usada antes da internação ou adição de um medicamento não usado antes da admissão (6).
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As dificuldades de execução foram bem mapeadas por um estudo realizado em dois grandes hospitais universitários na cidade de Boston, nos Estados Unidos. Os pesquisadores flagraram 1,4 discrepância potencialmente perigosal por paciente: a maior parte (72%) aconteceu pela omissão de drogas na entrevista pré-internação. Outros 26% aconteceram na hora de fechar as prescrições de drogas para a alta. O dado mais interessante da pesquisa foi revelar as barreiras associadas a erros. As discrepâncias aconteciam em casos em que os pacientes tinham pouca informação sobre os medicamentos que faziam uso antes da hospitalização, quando havia um grande número de alterações nas prescrições durante a internação e quando a entrevista era feita por um estagiário devido à pouca experiência (7).
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A reconciliação medicamentosa toma tempo dos profissionais e, inevitavelmente, quando bem-feita, gera trabalho: é preciso cruzar as informações dadas pelo paciente com prescrições e embalagens trazidas por ele, levantar dados de altas anteriores, entrar em contato com os especialistas que já atenderam o paciente para suprir lacunas de informação e incongruências. Cada entrevista do MARQUIS levou 21 minutos. Há estudos que chegaram até a 92 minutos (para admissões na geriatria) e 46 minutos para a internação geral (8). No MARQUIS, algumas das unidades que participaram da experiência contrataram funcionários para desempenhar a atividade, outros deslocaram profissionais de outras áreas – algo que nem sempre está ao alcance de muitos hospitais. “No entanto, esses custos podem ser mais do que compensados se os resultados levarem a menos eventos adversos relacionadas às drogas e menos readmissões”, escreveram os autores.
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No editorial que acompanhou a publicação do MARQUIS, os autores sugeriram em investir quatro pilares para a incorporação de programas complexos como de reconciliação medicamentosa:
Vantagem relativa – é preciso mostrar que a reconciliação medicamentosa resolverá outros problemas do hospital e da equipe, além de evitar riscos durante aquela internação. A construção de um histórico preciso do paciente ajuda em futuras internações e entradas pelo pronto-socorro, já que muitas emergências estão relacionadas à medicação;
Baixa complexidade – apesar de exigir inevitavelmente mais trabalho, é preciso que existam ferramentas que facilitem a reconciliação medicamentosa. Sistemas de registros eletrônicos podem ajudar no processo, apesar de uns dos achados do estudo MARQUIS sugerir que hospitais que adotaram esse tipo de registro durante o estudo tiveram resultados piores. Os autores afirmaram que a relação merece mais estudo e lançaram a hipótese de que o processo de implantação do sistema eletrônico pode ter desviado o foco do programa de reconciliação;
Visibilidade – a equipe precisa ver os resultados do esforço. Levantamentos com a redução do número de discrepâncias potencialmente perigosas, além de histórias desses pacientes ajudam a materializar o resultado e a motivar a equipe;
Apoio técnico – para resolver problemas relacionados às ferramentas usadas e para embasar as ações do programa. Treinamento e roteiro de entrevista detalhado são fundamentais. A seguir, recomendações da Sociedade de Hospitalistas dos Estados Unidos sobre como fazer o melhor histórico de medicação possível.
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COMO FAZER O MELHOR HISTÓRICO DE MEDICAÇÃO POSSÍVEL
* Obtenha informações completas sobre cada medicação
Nome, formulação (liberação prolongada?), dosagem, rota, frequência e indicação
* Faça perguntas para ajudar o paciente a lembrar
“Toma alguma medicação não-oral?”, “Quais toma todo dia, mesmo que se sinta bem?, “E de vez em quando?”, “Para dor de cabeça?”, “Azia?”, “Alergia?” “Tem alguma doença?”
* Pergunte sobre a última dose tomada
Vale para cada medicação: quando foi?
* Atente para medicações fáceis de se esquecer
Sprays nasais, inaladores, cremes, colírios, patches, supositórios, vitaminas, suplementos, fitoterápicos
* Saiba diferenciar recomendação da prática
Pergunte sobre aderência: “Na semana passada, quantas doses você pulou?
* Peça as embalagens para o paciente e familiares
São fontes confiáveis de formulação e dose
* Use duas fontes
O paciente e outra objetiva, como prescrições e laudo de altas anteriores, clínicos e especialistas
* Desconfie e investigue quando:
o paciente diz não se lembrar de detalhes, se contradiz e quando as informações que faltam são potencialmente perigosas
Fonte: Marquis – Society of Hospital Medicine
SAIBA MAIS
(1) Schnipper JL, Mixon A, Stein J, et al. Effects of a multifaceted medication reconciliation quality improvement intervention on patient safety: final results of the MARQUIS study. BMJ Qual Saf 2018:bmjqs-2018-008233.
(2) Etchells E, Fernandes O. Medication reconciliation: ineffective or hard to implement? BMJ Qual Saf Published Online First: 24 October 2018. doi: 10.1136/bmjqs-2018-008605.
(3) Ravn-Nielsen LV, Duckert ML, Lund ML, et al. Effect of an in-hospital multifaceted clinical pharmacist intervention on the risk of readmission: a randomized clinical trial. JAMA Intern Med 2018;178:375–82.
(4) Coffey M, Cornish P, Koonthanam T, et al. Implementation of admission medication reconciliation at two academic health sciences centres: challenges and success factors. Healthc Q 2009;12 Spec No Patient:102–9.
(5) Pevnick JM, Shane R, Schnipper JL. The problem with medication reconciliation. BMJ Qual Saf 2016;25:726–30.
(6) Meguerditchian A, Krotneva S, Reidel K, Huang A, Tamblyn R. Medication reconciliation at admission and discharge: a time and motion study. BMC Health Services Research. 2013;13:485.
(7) Tam VC, Knowles SR, Cornish PL, et al. Frequency, type and clinical importance of medication history errors at admission to hospital: a systematic review. CMAJ 2005;173:510–5.
(8) Pippins JR, Gandhi TK, Hamann C, et al. Classifying and predicting errors of inpatient medication reconciliation. J Gen Intern Med 2008;23:1414–22.
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