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Marcela Buscato
Hoje, quem precisa de um medicamento paga – não raramente, bastante – por cada vez que o compra, direta ou indiretamente (via governo ou plano de saúde). Funciona para drogas oncológicas, antidepressivos e para uma miríade de outras classes de medicações. Mas não deveria ser assim para os antibióticos. Pelo menos esse é o argumento por trás de uma discussão para mudar o modo como pagamos por eles. Com a ameaça mais do que iminente da resistência microbiana (quadro abaixo), uma antiga discussão voltou à tona entre pesquisadores, indústria farmacêutica e governos: como estimular o desenvolvimento de novos antibióticos, um campo que anda em baixa nas últimas décadas?
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Com a justificativa de que o modelo de pagamento por uso não é suficiente para bancar as despesas da indústria farmacêutica com o desenvolvimento de novos antibióticos, a agência do governo americano que regula medicamentos e alimentos nos EUA, a Food and Drugs Administration (FDA), lançou uma proposta polêmica. E se os hospitais tivessem que comprar licenças para usar antibióticos, assim como as empresas fazem ao adquirir licenças para o uso de softwares? A proposta foi apresentada em junho pelo médico americano Scott Gottlieb, representante do governo dos EUA que chefia a FDA, e foi encarada com certo ceticismo.
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Nesse modelo, é como se os hospitais pagassem adiantado por um pacote fechado de ciclos de cada antibiótico. Caberia a eles administrar quais pacientes ganhariam o direito de usar os medicamentos. Segundo a proposta da FDA, seria uma maneira de resolver dois problemas: 1) o uso indiscriminado de antibióticos, porque os médicos pensariam melhor se a medicação é realmente necessária e qual seria o melhor tipo para cada caso; 2) a falta de financiamento para pesquisa: a indústria farmacêutica receberia pagamentos adiantados dos hospitais, tendo assegurado a viabilidade comercial dos medicamentos lançados (sem depender de vendas isoladas e esporádicas).
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A proposta parece controversa por querer assegurar pagamentos para a indústria, mas é uma tentativa de resolver um paradoxo moderno. Como conciliar a necessidade de ampliar as práticas racionais de prescrição de antibióticos, um imperativo para não perder a guerra contra a resistência microbiana, sem debilitar a receita que, diz a indústria, garante a possibilidade de investir em novos antibióticos? Dados da consultoria IMS Health, especializada no mercado farmacêutico, sugerem que os antibióticos corresponderam a 6,4% das prescrições feitas nos EUA em 2013, mas apenas a 2,6% do valor arrecadado. (1)
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A verdade é que desenvolver novos antibióticos realmente não é das tarefas mais fáceis. Primeiro porque a pesquisa está cada vez mais difícil. As fontes mais acessíveis já foram usadas e conseguir novas moléculas exige mais investimento. Em segundo lugar, os ensaios clínicos precisam recrutar um número cada vez maior de pacientes para conseguir amostras significativas de bactérias resistentes, já que exames para identificar com precisão os agentes infecciosos são escassos e a prescrição é praticamente empírica. Não raramente, os resultados obtidos não são muito melhores do que os medicamentos que estão há anos no mercado, com a patente já expirada e, portanto, com preços mais competitivos. Levantamentos sugerem que antibióticos são retirados do mercado pelas fabricantes três vezes mais do que em outras classes de medicamentos (2). A receita da classe também é prejudicada por uma particularidade: os antibióticos costumam ser mais usados anos depois de entrarem no mercado, quando a resistência aos mais antigos que ele fica maior. É daí que se tornam mais necessários e as vendas são maiores. O problema é que, até chegar a essa fase, a patente já pode ter expirado. Quem quer entrar em um negócio desses?
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Nos Estados Unidos, onde os pagamentos dos sistemas de saúde do governo são pré-determinados de acordo com grupos fixos de doença, discute-se mudar a regra para pagar integralmente o valor de antibióticos modernos que comprovem eficácia superior. Há quem defenda que o modelo fixo de remuneração incentive os hospitais a usar os medicamentos mais baratos, para que a compra de drogas mais modernas não estourem o valor pré-determinado que será pago pelo governo, deixando o hospital no prejuízo. Uma maneira de contornar a situação seria permitir, caso a caso, que o governo pague o custo total do medicamento inovador quando for realmente necessário. Uma exceção foi aberta em 2012 para o antibiótico fidaxomicina, usado no tratamento de infecções por Clostridium difficile. O pagamento do valor extra durou dois anos e não foi renovado depois disso. Esse tipo de abordagem, de caso extraordinário em caso extraordinário, pode furar a lógica da remuneração por grupos de doenças, que é conter gastos desnecessários no sistema de saúde.
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Outra possibilidade discutida em artigos científicos, alguns com a participação de pesquisadores da indústria, são pagamentos periódicos que os governos fariam para empresas e instituições que pesquisem antibióticos. Seria uma espécie de seguro para financiar o desenvolvimento de novas drogas (3). Quando chegasse a hora de usar o novo antibiótico, ele teria de ser comprado normalmente, mas, segundo os autores da ideia, “a um preço suficientemente alto para desencorajar o uso difundido e descontrolado e suficientemente baixo para contribuir minimamente com a receita vitalícia do fabricante e desestimular o marketing para maximizar o volume de vendas” (4). O modelo soa um pouco otimista demais, ainda mais quando se leva em consideração que seria necessário chegar a um acordo sobre quanto cada país pagaria como seguro. Esse valor seria com base na renda per capita, por exemplo, hipótese aventada pelos autores?
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Enquanto modelos como esse deixam mais dúvidas do que respostas, os EUA levam para frente a proposta da licença de uso. Em junho, um comunicado da agência informou que a estratégia já está em discussão com outros órgãos, como o Centro de Serviços do Medicare e Medicaid – os sistemas de saúde do governo americano. Os detalhes de como ele funcionaria na prática ainda são escassos, mas a FDA afirma que os hospitais poderiam adquirir um pacote anual de licença para cada antibiótico, com base no número de leitos da instituição ou no histórico epidemiológico do hospital. “Essa estratégia colocaria as instituições inteiramente encarregadas da administração desses importantes medicamentos”, afirma o comunicado (5).
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Resta saber se ideia da licença anual não passa de uma maneira de travestir de stewardship uma garantia de receita para as farmacêuticas. O objetivo de fornecer recursos para pesquisa é nobre, mas haverá impactos de outra natureza na cadeia da saúde. É provável que os hospitais tenham de adiantar aos fabricantes grandes somas, alterando o fluxo de caixa. E que tenham de pagar por mais antibióticos do que costumam adquirir no modelo de compra a curto prazo. Quem garante que, no novo sistema, a prescrição de antibióticos não aumentará, para não desperdiçar recursos que foram comprados? Quem pagará essa conta?
Saiba mais
(1) Outterson K., Powers JH., Daniel GW., McClellan MB. Repairing the broken market for antibiotic innovation. Health Aff (Millwood). 2015 Feb;34(2):277-85. doi: 10.1377/hlthaff.2014.1003.
(2) Outterson K, Powers JH, SeoaneVazquez E, Rodriguez-Monguio R Kesselheim AS. Approval and withdrawal of new antibiotics and other antiinfectives in the U.S., 1980–2009. J Law Med Ethics. 2013;41(3):688–96
(3) Rex, J. H., & Outterson, K. (2016). Antibiotic reimbursement in a model delinked from sales: a benchmark-based worldwide approach. The Lancet Infectious Diseases, 16(4), 500–505. doi:10.1016/s1473-3099(15)00500-9
(4) Towse, A., Hoyle, C. K., Goodall, J., Hirsch, M., Mestre-Ferrandiz, J., & Rex, J. H. (2017). Time for a change in how new antibiotics are reimbursed: Development of an insurance framework for funding new antibiotics based on a policy of risk mitigation. Health Policy, 121(10), 1025–1030. doi:10.1016/j.healthpol.2017.07.011
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