Um levantamento realizado por pesquisadores americanos revelou que falhas humanas estão por trás de 55% dos eventos adversos decorrentes de procedimentos cirúrgicos. Metade dessas falhas tem como origem lapsos de cognição – aqueles em que nosso próprio cérebro nos prega uma peça. Quem nunca persistiu em uma ação, ignorando as evidências que sugeriam que aquela não era a melhor ideia para a situação? Ou que procurou apenas pelas evidências que queria encontrar? Ou que se perdeu em seus próprios pensamentos? Cirurgiões e profissionais de saúde também estão sujeitos a esses tipos de deslizes, que podem provocar danos para os pacientes.
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Entender como e quando esses lapsos ocorrem – objetivo do novo levantamento – é importante para a elaboração de estratégias que ajudem a evitar eventos adversos. “Há erros que gerações após gerações de cirurgiões e profissionais de saúde continuam cometendo porque não os treinamos para perceber como eles podem ser induzidos ao erro”, disse em entrevista ao IBSP – Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente um dos autores do estudo, o médico americano Todd Rosengart, chefe do departamento de cirurgia do Baylor College of Medicine, nos Estados Unidos.
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Como foi feita a pesquisa?
Rosengart e seus colegas avaliaram 5.365 procedimentos cirúrgicos, realizados em três hospitais entre os meses de janeiro e junho do ano passado. Entre as especialidades cirúrgicas acompanhadas, estavam cirurgia geral, de trauma, oncológica, cardio-torácica, vascular e transplantes abdominais.
Foram encontrados 188 eventos adversos. A maior parte (55%) aconteceram durante a cirurgia. Outros 27% ocorreram no período pós-operatório e 8% no pré-operatório. Em 4% dos eventos adversos, erros aconteceram em mais de uma etapa.
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Como e quando ocorrem erros em cirurgia?
Para entender as causas dos eventos adversos, os pesquisadores elaboraram uma nova classificação de erros, baseada em fatores humanos. Eles foram divididos em cinco categorias:
- (1) erros de planejamento e de solução de problemas: ao chegar a um diagnóstico ou recomendar um tratamento
- (2) erros de execução: ao realizar um procedimento, fazer uma prescrição ou ler resultado de exames
- (3) erros por violação de regras: decisão consciente de ignorar ou burlar práticas seguras
- (4) erros de comunicação: por omissão, interpretação equivocada de uma informação ou presunção de conhecimento
- (5) falhas no trabalho em equipe: problemas na atribuição de papéis, falta de liderança
Os autores concluíram que a maior parte dos erros aconteceram na fase de execução (51%). As falhas no planejamento e solução de problemas (29%) ficaram em segundo lugar. Os problemas de comunicação em terceiro (12%). As falhas causadas por problemas no trabalho em equipe (5%) e por violação de regras (3%) foram as menos frequentes.
Por que acontecem erros em cirurgias?
Os autores concluíram que a principal causa dos erros nas cirurgias são falhas cognitivas. Em 52% dos casos, os profissionais foram levados a uma ação ou a uma decisão equivocada por problemas de atenção, por ignorar sinais que iam contra sua ideia ou por favorecer indícios que reforçassem sua tese.
Essas situações aconteceram com mais frequência durante a fase de execução (32%). “Há muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo na sala de cirurgia e muita pressão, o que gera várias oportunidades de se cometer um erro”, afirma Rosengart. “Durante uma intervenção, é preciso agir rapidamente, a partir de um número limitado de informações, o que torna a cirurgia mais propensa a erros cognitivos do que outras especialidades.”
Os erros cognitivos parecem ainda mais preocupantes quando uma nova perspectiva dos dados revela que eles podem levar a um segundo erro. Quando se trata de planejar e resolver problemas, os lapsos cognitivos foram apontados como causa raiz de falhas técnicas em 76,5% dos situações.
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É possível evitar falhas cognitivas?
A rigor, soluções que tornem os sistemas à prova de erros de cognição são sempre mais eficazes. Mas, segundo os autores, elas não conseguem evitar sozinhas todas as falhas. “Os checklists, por exemplo, são estratégias sistemáticas, com o objetivo de evitar erros cognitivos. Mas há tantos que eles podem começar a interferir na habilidade do profissional de analisar o que está acontecendo, algo que chamamos de checklist burnout”, diz Rosengart. “Nenhuma solução é perfeita. Estratégias de sistemas e de treinamento cognitivo são complementares, não excludentes”, afirma Rosengart.
Treinamentos para evitar erros cognitivos ajudariam a fechar lacunas que nem mesmo as soluções baseadas em sistemas conseguiriam alcançar. “Pensando no consagrado modelo do queijo suíço, de James Reason, é como se o treinamento cognitivo fosse uma fatia extra de queijo, que contribui para evitar que todas lacunas se alinhem e um erro passe por elas”, diz Rosengart. Essa proteção pode ser a diferença que impede que um potencial evento adverso se torne, de fato, um incidente, com possíveis danos.
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Para que serve um treinamento cognitivo?
A indústria da aviação fornece um exemplo de como integrar estratégias para prevenir erros de diferentes naturezas. Os pilotos têm à sua disposição sistemas arquitetados para diminuir a variabilidade de conhecimento e experiência entre profissionais, como os famosos checklists (já tomados de empréstimo pela assistência à saúde) e regras para evitar distrações, como o “cockpit estéril” (a suspensão de quaisquer atividades, durante pousos e decolagens, que não estejam diretamente associadas a esses procedimentos). Mas os pilotos também recebem treinamentos para conseguir identificar neles próprios sinais de fadiga, que podem fazer com que se esqueçam de regras ou que cometam deslizes durante procedimentos de segurança. “Há muito o que podemos aprender com essas indústrias de alta confiabilidade e que não estamos fazendo”, afirma Rosengart. “Podemos treinar os cirurgiões para que eles consigam retomar seu foco após uma distração, como a queda de uma bandeja no corredor, por exemplo.”
No artigo, os autores sugerem simulações que apresentem aos profissionais situações poucos esperadas. “Os exercícios poderiam envolver simulações de cenários da vida real, a partir de reprodução de casos que já aconteceram”, escreveram. Essas simulações devem vir acompanhadas de uma avaliação do desempenho dos profissionais, recomendações e retomada do que já aconteceu em casos daquele tipo.
Referências
- (1) Suliburk JW, Buck QM, Pirko CJ, et al. Analysis of Human Performance Deficiencies Associated With Surgical Adverse Events. JAMA Netw Open. Published online July 31, 20192(7):e198067. doi:10.1001/jamanetworkopen.2019.8067
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