As interrupções durante o cuidado são um problema conhecido de perto pelos profissionais de saúde e uma fonte importante de possíveis erros, principalmente de medicação. Nas últimas semanas, o IBSP – Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente noticiou um levantamento americano que mostrou que 50% das interferências acontecem durante o momento da medicação e que os profissionais de enfermagem são os mais sujeitos a essas interferências (1). Em razão da frequência do problema e do potencial para causar danos graves aos pacientes, é preciso discutir estratégias que evitem distrações no momento da medicação, isso também um desafio.
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“As interrupções são tão frequentes que os profissionais acabam se acostumando”, afirma o enfermeiro Breno de Souza Santana, pesquisador da Universidade de Brasília. “Eles consideram como algo corriqueiro do trabalho e nem enxergam mais como uma adversidade”. Para a gestão dos hospitais, é ainda mais difícil ver o problema e, principalmente, relacioná-lo a erros de medicação. Um estudo realizado por Santana e colegas em dois hospitais públicos de Brasília fornece dados valiosos para chamar a atenção para o assunto (2).
Durante dez dias, os pesquisadores observaram o processo de preparo e administração de medicamentos pela enfermagem nas instituições. Contaram 1,7 erro por dose administrada aos pacientes – de manuseio e preparo inadequado a não identificação do paciente, antissepsia inadequada e horário errado de administração. Em um dos hospitais, 53,6% dessas falhas estavam associadas a interrupções. No segundo hospital, 24,4% tinham relação com interferências externas. “Existe uma associação forte entre interrupções e erros e é preciso torná-la visível”, diz Santana.
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As estratégias para evitar as interrupções na medicação
Uma das estratégias implementadas em algumas instituições de saúde para inibir que os profissionais sejam interrompidos no momento da medicação é o uso de coletes ou de jalecos com a inscrição “Não interrompa”. Na Austrália, onde foi realizado um dos levantamentos mais amplos, pesquisadores acompanharam por três meses a implantação de um bundle anti-interrupção em um hospital de 650 leitos (3). A intervenção era composta por cinco medidas:
- uso de um jaleco com a inscrição “Não Interrompa” pela enfermagem durante a preparação e administração de medicamentos;
- workshops para explicar aos à enfermagem a intervenção e identificar barreiras à implantação nos departamentos e possíveis facilitadores;
- sessões educativas com os demais profissionais clínicos para alertar sobre o risco das interrupções (pelo menos três sessões em um intervalo de três semanas);
- Educação dos pacientes: explicação de o porquê da enfermagem usar o colete e pedido que para não interrompam durante o processo. Produção e distribuição de panfletos e folders para pacientes, familiares e cuidadores
- Uso de lembretes, como posters e adesivos, pelas alas para lembrar os funcionários de não interromper a enfermagem no momento da medicação
A conclusão dos australianos é que a intervenção foi efetiva, mas teve um efeito prático modesto: reduziu em 30% as interrupções não relacionadas à medicação. Com base em levantamentos anteriores, eles estimaram que essa diminuição conseguiria reduzir apenas 2% dos erros em potencial.
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Jalecos especiais: o problema com o alerta de vestir
Os pesquisadores australianos descobriram que uma das principais barreiras foi o próprio jaleco: a enfermagem não demonstrou grande entusiasmo em aderir ao uso da veste. Entre os profissionais que participaram da intervenção e aceitaram responder a uma pesquisa de satisfação, 52% afirmaram que os jalecos eram quentes demais para usar. Cerca de 40% reclamaram do peso da vestimenta. Mais de 50% disseram que vesti-lo também desperdiçava tempo e torna o processo de medicação mais demorado. O resultado é que finalizada a intervenção, menos de 50% da enfermagem envolvida queria continuar colocando em prática o conjunto de estratégias.
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Outra barreira importante ao uso de vestes de alerta é a percepção dos pacientes. Algumas instituições de saúde do Reino Unido desistiram de usar a estratégia dos jalecos de “Não Interrompa” depois de críticas de pacientes e de até de profissionais de saúde (4). A preocupação é que esse tipo de iniciativa iniba inadequadamente a comunicação entre a enfermagem e os pacientes, principalmente no caso de dúvidas sobre a medicação ou do relato de sintomas de uma possível reação adversa. Afinal, nem todas as interrupções são negativas quando se trata de segurança do paciente. O sinal de “parar a linha”, seja a partir da dúvida de um paciente ou do alerta de um colega, contribui para a segurança do cuidado.
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Haveria, então, estratégias mais sutis e menos intimidatórias de dar o recado? Um estudo italiano testou a percepção de pacientes a três modelos de jalecos (5). O primeiro trazia a inscrição “Por favor, não me interrompa”. No segundo, lia-se “APENAS pacientes podem me interromper” e no terceiro “Interrompa-me APENAS se for urgente”. Os resultados não foram muito animadores. A percepção negativa foi relata por 42,% dos pacientes para a primeira versão, 48% na segunda e 38,4% na terceira. De acordo com os pesquisadores, as diferenças entre os valores não são estatisticamente significantes – o que significa, na prática, que os três jalecos foram considerados intimidadores ou inapropriados.
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Zonas de silêncio
Outra tática que costuma ser adotada quando as instituições de saúde percebem o risco das interrupções para a segurança da medicação é a chamada zona de silêncio. Trata-se de uma área, normalmente, uma sala reservada, onde é proibido a interação e até a entrada de celulares. O conceito foi emprestado de um procedimento da indústria da aviação, o cockpit seguro. Durante pousos e decolagens, os membros da cabine não podem conversar ou realizar qualquer outra atividade que não esteja relacionada à subida e descida da aeronave.
Na literatura científica, é difícil encontrar estudos que tenham avaliado isoladamente a implantação das zonas de não interrupção. Normalmente, os estudos avaliam um conjunto de estratégias, como educação dos profissionais e pacientes, vestes de alerta, adoção de um checklist para medicação e as salas reservadas.
Apesar de os estudos sugerirem variadas taxas de sucesso em iniciativas para reduzir as interrupções, os levantamentos que compilam várias pesquisas, as chamadas revisões sistemáticas, sugerem resultados relativamente modestos. E apontam para a falta de estudos mais robustos sobre o assunto, de maior alcance e com metodologias que permitam comparações. Uma revisão realizada em 2012 a partir de dez estudos afirma que as evidências das eficácias são fracas (6). “É preciso cautela para implementar essas intervenções até que estudos controlados confirmem seu valor”, escreveram as autoras, duas pesquisadores da University of New South Wales, na Austrália.
É uma conclusão semelhante a que chegaram os autores do bundle anti-interrupção relatado no início do texto e que enfrentaram a resistência da própria enfermagem no uso das vestes de alerta. “É preciso avaliar o potencial para reduzir erros frente aos custos exigidos pela intervenção, a probabilidade de ela ser aceita e sua sustentabilidade a longo prazo”, escreveram. Em outras palavras, antes de implantar estratégias cheias de boas intenções, é preciso avaliar se ela, de fato, trará resultados e, sobretudo, se a equipe está disposta a abraçá-la.
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Educação e treinamento: estratégias essenciais
As intervenções no sistema, que corrigem as causas das interrupções, têm mais chances de sucesso. Seria a sobrecarga de trabalho? Cada profissional cuida de muitos pacientes ao mesmo tempo e é exigido a todo momento, o que também contribui para a fadiga? Falta treinamento para aumentar a adesão às práticas seguras de medicação? O ambiente é caótico? Santana, o pesquisador da Universidade de Brasília que estudou as interrupções em hospitais brasileiros, diz já ter visto até aparelho de televisão no local de preparo dos medicamentos. Provocar mudanças no sistema é mais difícil e mais demorado. Mas pode ser mais eficiente.
“A melhor solução é despertar o espírito crítico dos futuros profissionais de saúde já na faculdade”, afirma Santana. Eles precisam enxergar o problema para que possam ser vigilantes e entendam a importância desse tipo de intervenção. Em seu mestrado, Santana estuda como criar, ainda na graduação, simulações fiéis às práticas da vida real para os estudantes. “Precisamos formar profissionais que já tenham essa visão crítica”, afirma Santana. “Não adianta implantar medidas se os profissionais não aderem.”
Referências
- (1) Kellogg, K. M., Puthumana, J. S., Fong, A., Adams, K. T., & Ratwani, R. M. (2018). Understanding the Types and Effects of Clinical Interruptions and Distractions Recorded in a Multihospital Patient Safety Reporting System. Journal of Patient Safety, 1.doi:10.1097/pts.0000000000000513
- (2) Santana SB, Rodrigues SB, Stival MM, Rehem MT, Lima RL, Volpe GC. Interrupções no trabalho da enfermagem como fator de risco para erros de medicação. Av Enferm, 37(1): 56-64.
- (3) Westbrook JI, Li L, Hooper TD, et al. Effectiveness of a ‘Do not interrupt’ bundled intervention to reduce interruptions during medication administration: a cluster randomised controlled feasibility study. BMJ Quality & Safety 2017;26:734-742.
- (4) Beckford, M. ‘Do not disturb’ message removed from nurses’ tabards. The Telegraph (02.09.2011). Acessado em 08/08/2019.
- (5) Palese, A., Ferro, M., Pascolo, M., Dante, A., & Vecchiato, S. (2015). “I Am Administering Medication—Please Do Not Interrupt Me.” Journal of Patient Safety, 1. doi:10.1097/pts.0000000000000209
- (6) Raban MZ, Westbrook JI Are interventions to reduce interruptions and errors during medication administration effective?: a systematic review. BMJ Quality & Safety 2014;23:414-421.
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