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Área da saúde não está imune: será um ano difícil

Área da saúde não está imune: será um ano difícil
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Não há dúvida que todos os setores serão atingidos pela crise, incluindo a saúde. E quem sai perdendo, mais uma vez, é o povo, o paciente.

 Por Renato Vieira*

 Crise também na Saúde

A segurança assistencial não é um objetivo imune aos fatos macro e microeconômicos de uma sociedade. Decisões executivas são baseadas tanto no resultado do mês quanto nos cenários projetados a médio e longo prazo, nacionais e internacionais, e estas decisões costumam impactar direta ou indiretamente a qualidade do cuidado prestado. Neste sentido, a responsabilidade dos gestores neste ano tornou-se maior: como preservar nossos pacientes das difíceis decisões que aguardam todo o sistema de saúde nos próximos meses?

Vai ser um ano difícil para todos, não há nenhuma dúvida. A mistura deletéria de crise política e econômica, refletida concretamente em ameaça inflacionária, alta de juros, crise cambial, desemprego e estagnação é uma preocupação de toda a sociedade, e não apenas nos serviços de saúde. Mas dentro do nosso setor podemos antever algumas tendências, como as descritas abaixo, com o objetivo de nos prepararmos para as mesmas.

O Fundo Monetário Internacional divulgou em janeiro deste ano a perspectiva de uma retração do PIB brasileiro em torno de 3,5% (1). O único país com pior perspectiva foi a Venezuela, cuja retração deve beirar os 6%. Em termos concretos, isso impacta gravemente nos recursos disponíveis para o governo e para a sociedade, fazendo minguar o já reduzido orçamento que financia a saúde, seja ela pública ou privada. Dados de dezembro de 2015 da ANS mostram que cerca de 75% da população não possui nenhuma cobertura por planos privados de saúde. Considerando que ¾ da população dependem exclusivamente do SUS, é crítico constatarmos que dos 9% do PIB dedicados à saúde, o gasto governamental sequer chega a 50% desta fatia.

A queda do PIB é acompanhada também pelo desequilíbrio fiscal, dado a queda nas arrecadações. Para este ano, o Ministério da Saúde anunciou um corte de 10% em seu orçamento, diminuindo em quase 10 bilhões de reais dos investimentos do SUS. Mas não é apenas no setor público que observaremos a escassez de recursos.

Quando observamos os dados da ANS (2) relativos às taxas de cobertura de planos de saúde privados (cobertura médica) nas 15 principais regiões metropolitanas do Brasil, constatamos que nos últimos 5 anos houve substancial incremento na maioria das regiões. Entretanto, ao isolarmos o desempenho de 2015 em relação a 2014, 8 das 15 metrópoles mostraram importante redução das taxas de cobertura (figura 1).

 

Figura 1
Figura 1

 

Embora ao olharmos as quedas possamos ter a impressão de que a mesma tenha sida “pequena”, o cenário se torna mais esclarecedor quando comparamos o número de beneficiários por faixa etária nos anos de 2015 e 2014 (fig.2):

 

Figura 2
Figura 2

 

Neste caso, podemos observar com grande nitidez a concentração da queda em beneficiários jovens, entre 19 e 33 anos. As explicações para este fenômeno são variadas, sendo necessário considerar com grande peso o fenômeno do desemprego, uma vez que 67% dos planos privados em dezembro de 2015 estavam vinculados à modalidade coletiva empresarial.

No SUS estas mudanças trarão um cenário desafiador de aumento de demanda aliada a uma diminuição de seus já escassos recursos. Ainda que a população que está deixando a cobertura dos planos privados seja prioritariamente jovem, esta mudança se deu de forma abrupta no sistema, tanto em corte de recursos como em aumento de demanda. Também não é desprezível a hipótese de que com o agravamento da crise econômica haja também a migração de população idosa para o SUS, dado os custos da saúde suplementar.

Na saúde suplementar, onde o modelo de financiamento depende de uma base populacional jovem e saudável contribuindo economicamente para financiar o aumento do uso de recursos de saúde esperado da população envelhecida, o exôdo de jovens economicamente ativos pode agravar agudamente a sinistralidade das operadoras, com repasse desta pressão financeira aos prestadores parceiros. Aliados à inflação na saúde, pressionados pela desvalorização do câmbio e com menor número de pacientes, os prestadores devem ter suas margens corroídas neste processo.

A correlação da crise econômica com a segurança do paciente pode não ser tão nítida em um primeiro momento. Com tantas variáveis como as que o sistema de saúde possui, isolar o fator financeiro e medir seu impacto exige um grande número de casos e um modelo de regressão multivariado robusto que permita o controle adequado das múltiplas inferências possíveis. Nesta linha, Encinosa & Bernard (3) publicaram em 2005 um robusto trabalho que abordava esta associação. Valendo-se de uma base de dados de todas as altas hospitalares entre 1996 e 2000 realizadas pelos hospitais gerais de cuidados agudos da Florida, os mesmos selecionaram uma amostra de 40% das internações cirúrgicas ocorridas em maiores de 17 anos de idade. O estudo contou com pouco mais de um milhão de internações, de 176 hospitais diferentes, por um período de 5 anos.

Utilizando um algoritmo  de detecção de problemas de segurança (Patient Safety Indicator Module – PSI), validado pela Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ), e associando os dados de qualidade com as análises financeiras destas instituições, os autores encontraram associação positiva entre margens operacionais corroídas e eventos adversos preveníveis. Hospitais que se encontravam no menor quartil de margem operacional (margens abaixo de -0,5%) mostraram 14,4% mais chances de ocorrência de eventos adversos relacionados à enfermagem, quando comparados aos hospitais do quartil de maiores margens (margens acima de 9,3%). Considerando a totalidade de eventos pesquisados, este aumento de risco ficou em 12%.

Bazzolli et al. (4) chegaram a conclusões muito semelhantes analizando os dados de 1544 hospitais americanos distribuídos em 11 estados ao longo dos anos de 1995 a 2000, ainda que os dados tenham sugerido menor poder da associação entre resultado financeiro e qualidade assistencial.

Chegaram os tempos de “apertar os cintos”. As soluções não são novas: modelos alternativos de remuneração, integração da rede assistencial buscando a racionalização do uso de recursos, competição baseada em qualidade (e não em preço), incorporação racional da tecnologia, modelos de saúde preventivos, gestão em nível de excelência de doenças crônicas e reinternações, etc. Ocorre que tudo isso envolve tempo e o aprofundamento de discussões entre fontes pagadoras, prestadores e clientes que – até o momento – não tem trazido a velocidade das mudanças que o problema necessita. A curto prazo, a resposta a estes cenários costuma ser estereotipadamente desadaptativa: pressões maciças por redução de custos, cortes que comprometem a qualidade e segurança da assistência, endurecimento das negociações entre prestadores e fontes pagadoras (ao invés de construção de parcerias) e maior tolerância dos atores do sistema de saúde com as violações de segurança. É a lógica do “isso a gente vê depois”.

A crise nos colocou novamente em uma encruzilhada. Que resposta teremos para ela? De um lado, a difícil tarefa de criar soluções coletivas em negociações complexas: todos abrirem mão de um pedaço maior do capital em prol de uma divisão mais sustentável do mesmo. Do outro lado, as respostas que conhecemos tão bem: lutar ferozmente pelo próprio interesse, seja quais forem as consequências. Quando o paciente deixa de ser o foco da assistência, ele vira objeto manipulado neste conflito de interesses: suas autorizações, seus exames, suas cirurgias, sua permanência no hospital correm todas o risco de serem alvo de ações cujo principal interesse não é sua saúde. Espero que os gestores compreendam a responsabilidade que possuem nas mãos, e que no cenário que enfrentaremos escolham com sabedoria suas decisões.

Referências:

  1. World Economic Outlook, Update 19/01/2016: International Monetary Fund – IMF (https://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2016/update/01/pdf/0116.pdf)
  2. Consulta ao Sistema TABNET da Agência Nacional de Saúde Suplementar, realizada em 11/03/2016. (http://www.ans.gov.br/anstabnet/index.htm)
  3. Encinosa WE & Bernard DM. “Hospital Finances and Patient Safety Outcomes”. Inquiry 42: 60–72 (Spring 2005).
  4. Bazzolli GJ, Chen HF, Zhao M & Lindrooth LC. “Hospital Financial Condition and the Quality of Patient Care”. Health Econ. 17: 977 – 995 (2008).

 

* Renato Vieira é Gerente Médico Corporativo no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo e consultor do IBSP.

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